A identidade dos 144 mil e o fenômeno de “ver e ouvir”
Entenda por que esses elementos são fundamentais nas visões recebidas pelo apóstolo João
No livro do Apocalipse há alguns fenômenos sensoriais importantes que necessitam de investigação para que se possa entender melhor o conteúdo teológico do livro. Um desses é o chamado fenômeno de “ver e ouvir”. Ele está presente em pelo menos quatro situações, que serão brevemente analisadas a seguir.
Em Apocalipse 5:5, João foi arrebatado ao céu (4:1) até ao trono de Deus, no santuário celestial, o qual está rodeado por 24 anciãos e quatro seres viventes (4:2–7), que louvam a Ele continuamente. João vê um livro selado e “chora muito”, porque pensa que não há ninguém digno de retirar os selos, abrir o livro, “nem mesmo olhar para ele” (5:1–4).
Leia também:
Nesse momento, “um dos anciãos me disse: Não chores; eis que o Leão da tribo de Judá, a Raiz de Davi, venceu para abrir o livro e os seus sete selos” (5:5). João ouve de um dos anciãos que o Leão da tribo de Judá é digno de abrir o livro. A imagem que o leitor faz nesse momento é de um ser forte e imponente como um leão. No verso seguinte, contudo, João se volta e vê no meio do trono, “de pé, um Cordeiro como tendo sido morto” (5:6), humilde e singelo. Esse Cordeiro vem e toma o livro (5:7), fazendo o que fora dito pelo ancião no verso 5. Ou seja, o Leão e o Cordeiro não são duas entidades distintas, mas se referem à mesma pessoa.
João ouve uma descrição e vê algo distinto, mas tendo o mesmo referente. Ao invés de serem figuras opostas (Leão x Cordeiro), são descrições que se complementam a fim de que o leitor tenha uma visão mais ampla do mesmo referente. Ou seja, o Ser que é digno de abrir o livro tem a realeza do Leão e a mansidão do Cordeiro. Forte e imponente, humilde e singelo. Leão vitorioso que venceu pela sua morte, como Cordeiro. Esse Ser é tão tremendo que apenas as palavras que João ouve não são capazes de representá-Lo. Essa descrição, para ser melhor entendida, precisa ser complementada pela cena que João vê. Dessa forma, o fenômeno de “ver e ouvir” faz com que esse Ser seja melhor representado e identificado.
Uma mesma realidade
Esse fenômeno também ocorre em Apocalipse 21:2–3. No texto, João primeiramente vê e depois ouve. Mas novamente o ver e o ouvir são complementares e se referem à mesma entidade. No verso 2 João vê “a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do céu, da parte de Deus, ataviada como noiva adornada para o seu esposo.” O verso 3 complementa a visão: “Então, ouvi grande voz vinda do trono, dizendo: Eis o tabernáculo de Deus com os homens. Deus habitará com eles. Eles serão povos de Deus, e Deus mesmo estará com eles.” João vê a cidade santa, a nova Jerusalém, e depois ouve a explicação que vem diretamente do trono dizendo que a cidade é “o tabernáculo de Deus.” Duas ideias distintas tendo o mesmo referente. A nova Jerusalém, portanto, é o santuário de Deus que desce do céu e vem para a Terra.
Apocalipse junta em dois versos (21:2–3) duas imagens distintas que correm em paralelo como um fio de ouro tanto no Antigo Testamento como no Novo Testamento. No livro de Hebreus, em especial, podemos ver essas duas ideias juntas. Em Hebreus 10:19–22, o crente é convidado a entrar no santuário celestial. E em 14:22 é dito que o crente “tem chegado à cidade do Deus vivo, a Jerusalém celestial.” Mas o fenômeno de “ver e ouvir” em Apocalipse liga mais fortemente essas duas descrições quando as usa apontando para apenas um referencial em versos imediatos (uma explicação mais detalhada sobre a cidade-tabernáculo em Apocalipse 21–22 será fornecida em outro artigo).
Um terceiro lugar onde o fenômeno de “ver e ouvir” acontece é em Apocalipse 17:1–3. O texto diz que “veio um dos sete anjos que têm as sete taças e falou comigo, dizendo: Vem, mostrar-te-ei o julgamento da grande meretriz que se acha sentada sobre muitas águas” (verso 1). João ouve o anjo dizer sobre o julgamento da meretriz assentada sobre muitas águas. Mas quando o anjo o transporta para ver o que havia acabado de descrever, João registra: “vi uma mulher montada numa besta escarlate, besta repleta de nomes de blasfêmia, com sete cabeças e dez chifres” (verso 3). João ouve e vê uma mulher meretriz. Mas o anjo fala que ela está assentada sobre muitas águas, e João a vê assentada sobre uma besta escarlata.
Novamente, o mesmo fenômeno parece estar em ação. Muito embora a descrição e a visão pareçam opostos (água x animal), eles estão adjacentes na mesma narrativa e têm o mesmo referente. São apenas maneiras distintas de se falar da mesma realidade. Devido à complexidade da entidade referida e para que uma descrição mais ampla possa ocorrer, faz-se necessário que o fenômeno de “ver e ouvir” entre em ação.
Salvos pelo Cordeiro
Usualmente, em Apocalipse a figura das “muitas águas” (17:1) representa muitos povos (17:15), enquanto a besta escarlata (17:3) remonta à besta de Apocalipse 13:1–3, que por sua vez é um amalgama das bestas de Daniel 7 e dos povos ali representados. É interessante notar como em Apocalipse 17 há também a junção de Jerusalém, Babilônia e Roma em uma única imagem (versos 4–13). Por isso a dificuldade de se interpretar esse capítulo. A compreensão do fenômeno de “ver e ouvir”, contudo, talvez possa auxiliar na compreensão de toda a passagem.
À vista disso, parece que em geral o capítulo quer evidenciar primeiramente a coligação de todos os povos e reinos da Terra apoiando a mulher meretriz (17:1–15; ela se assenta sobre eles, águas e besta), mas que esses finalmente a destroem (versos 16–17). “O mal por si só se destrói”, já dizia o velho ditado. Mas o Cordeiro e Seus eleitos vencerão, “pois [o Cordeiro] é o Senhor dos senhores e o Rei dos reis.”
Apocalipse 7:3–9 é a última passagem a ser brevemente analisada aqui, onde também é possível se encontrar o fenômeno de “ver e ouvir”. Essa passagem faz parte do interlúdio entre o sexto e o sétimo selo em resposta à pergunta final do sexto selo: “porque chegou o grande Dia da ira deles [Deus e o Cordeiro]; e quem é que pode suster-se?” (6:17). Nos versos seguintes, um anjo clama com grande voz para que a Terra não seja destruída “até selarmos na fronte os servos do nosso Deus” (7:3). João escreve a seguir: “Então, ouvi o número dos que foram selados, que era cento e quarenta e quatro mil, de todas as tribos dos filhos de Israel” (7:4). Ele ouve o número dos selados que irão suster-se no grande Dia da ira de Deus e do Cordeiro — cento e quarenta e quatro mil. E também ouve a lista simbólica desses selados — 12 mil de cada tribo listada (7:5–8).
Depois de ter ouvido o número e a lista dos selados, João declara: “vi, e eis grande multidão que ninguém podia enumerar, de todas as nações, tribos, povos e línguas, em pé diante do trono e diante do Cordeiro” (7:9). O que João vê em Apocalipse 7:9 parece explicar o que está sendo falado desde 6:17.
Três comparações são essenciais. Para a pergunta “Quem poderá suster-se no grande Dia da ira de Deus e do Cordeiro?” (6:17), a resposta que João ouve é: “os cento e quarenta e quatro mil selados” (7:3–4). E o que João vê é uma “grande multidão que está em pé diante do trono e do Cordeiro” (7:9). João ouve sobre os cento e quarenta e quatro mil selados “de todas as tribos dos filhos de Israel” (7:4), com uma listagem simbólica adjacente (7:5–8). João vê “grande multidão que ninguém podia enumerar, de todas as nações, tribos, povos e línguas” (7:9).
É importante ressaltar que a descrição sobre o que a “grande multidão” faz e o relacionamento dela com o Cordeiro e com Aquele assentado no trono em Apocalipse 7:9–17 é similar à narrativa dos cento e quarenta e quatro mil em Apocalipse 14:1–5 (cf., 7:17; 14:4). O fenômeno de “ver e ouvir” parece indicar, portanto, que os cento e quarenta e quatro mil e a grande multidão seriam um mesmo grupo retratados de maneira distinta a fim de que uma representação mais abrangente pudesse ser oferecida.
O fenômeno sensorial analisado indica que o Leão e o Cordeiro são uma só pessoa, que a Nova Jerusalém e o Tabernáculo de Deus são o mesmo lugar, que os povos e os reinos da Terra se reúnem todos para destruir a mulher meretriz, e que os cento e quarenta e quatro mil e a grande multidão são representações distintas do mesmo grupo de salvos, daqueles que ficarão de pé no grande Dia da ira de Deus e do Cordeiro e que O servirão em Seu santuário (Nova Jerusalém, cf. 22:3; 7:15) para sempre.