O cristão deve ser feminista?
Historiadora faz uma avaliação do papel do cristão em relação ao feminismo, especialmente as relações com a Bíblia e com os escritos de Ellen White
Por Suelen Palombo
Sejamos todos feministas e o mundo será melhor! Certamente você já se deparou com um pensamento igual ou semelhante a esse. Mas já se perguntou se ele está correto?
Nas últimas décadas, a ideologia feminista tem sido apresentada à sociedade como a solução para um mundo desigual, sem esperanças e sem justiça. As próprias teóricas feministas são responsáveis por difundir essa ideia. A feminista Bell Hooks chega a dizer que uma revolução feminista “tornará possível que sejamos pessoas – mulheres e homens – autorrealizadas, capazes de criar uma comunidade amorosa, de viver juntas, realizando nossos sonhos de liberdade e justiça, vivendo a verdade de que somos todas e todos ‘iguais na criação’”.[1]
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Primeira onda feminista
Mas seria a ideologia feminista tão fundamentada no cristianismo e, assim, capaz de trazer solução para um mundo pecador, ou na contramão disso buscaria substituir o cristianismo apresentando-se como a nova mensagem salvífica para a humanidade? Para responder a essas questões, teremos que conhecer um pouco da história do feminismo e comparar com a Palavra de Deus as bases que alicerçam seus pensamentos.
A primeira onda do movimento feminista surge em meados do século 19, mesmo período em que despontam outros movimentos anticristãos como marxismo, evolucionismo e espiritualismo. Datada no ano de 1848, a primeira convenção do movimento feminista teve como palco para suas reivindicações uma igreja Metodista wesleyana em Seneca Falls, Estado de Nova York, nos Estados Unidos.
Dentre as várias solicitações, a Declaração dos Sentimentos, documento apresentado pelas feministas naquele dia, reivindicava desde o direito ao voto até mudanças na visão da autoridade religiosa masculina na igreja. Para a autora Carolyn McCulley, o primeiro documento feminista apresentado em Seneca Falls já abria caminho para o que viriam a se tornar problemas futuros no âmbito religioso: “O desafio à igreja que foi levantado nesse documento levou, por fim, à destruição de conceitos biblicamente definidos de Deus, pecado, diferenças de gênero, matrimônio e outros.”[2]
Apesar de a reunião ter acontecido em uma igreja, algumas de suas idealizadoras pareciam já não acreditar nos princípios bíblicos e ainda enxergá-los como algo a ser combatido. A feminista Elizabeth Cady Stanton, autora da Declaração dos Sentimentos, foi um dos principais nomes do movimento feminista de primeira onda e uma das importantes líderes sufragistas nos Estados Unidos.Elizabeth, porém, em seus escritos, demonstrou enxergar a Bíblia como um mito tenebroso que lhe roubava a alegria. Ao falar de sua experiência religiosa, disse:
“Depois de muitos meses da peregrinação esgotante no labirinto intelectual de ‘A Queda do Homem’, ‘Pecado Original’, ‘Depravação Total’, ‘Ira de Deus’, ‘Triunfo de Satanás’, ‘A Crucificação’, ‘a Expiação’, e a ‘Salvação pela Fé’, encontrei salvação para a luz da Verdade. Minhas superstições religiosas deram lugar a ideias racionais baseadas em fatos científicos, e, proporcionalmente, à medida que olhava para todas essas coisas de um novo ponto de vista, tornei-me mais e mais feliz a cada dia. [...] Vejo como um dos maiores crimes obscurecer a mente dos jovens com essas superstições tenebrosas; e, com temores do desconhecido e daquilo que não pode ser conhecido, envenenar toda a sua alegria na vida.”[3]
Algumas décadas após a reunião em Seneca Falls, já no fim de sua vida, Elizabeth escreveu com outras mulheres a The Woman’s Bible. Trata-se de uma espécie de Bíblia feminista que reinterpretava as Escrituras já as colocando no papel de responsáveis pela opressão masculina sobre as mulheres ao longo do tempo. Veremos adiante que esse pensamento vai permear toda a história do feminismo e resultará no combate constante ao patriarcado, abordado por diversas expoentes do movimento. “Havia coisas no livro que escandalizaram muita gente. A nova Bíblia não dizia especificamente que Deus era mulher, mas dava a entender.”[4]
Outra semelhança possível de se identificar entre Elizabeth e feministas mais contemporâneas é a visão distorcida do papel de mãe e dona de casa. Para ela, as funções domésticas eram um fardo que lhe tiravam a liberdade, e o casamento serviria como um inibidor dos talentos femininos.
Movimento da temperança
Ainda nesse período denominado primeira onda, é necessário falar sobre o Woman's Christian Temperance Union – WCTU (União de Temperança das Mulheres Cristãs – UTMC). Era um movimento que se mostrava mais forte do que a luta pelo sufrágio feminino e conseguia com mais facilidade cooptar mulheres para a causa. Os Estados Unidos estavam imersos em uma epidemia de alcoolismo. A escritora Ellen White, falando sobre o problema, disse ser possível “atribuir quatro quintos dos crimes que se cometiam à influência da bebida alcoólica. Não há um caso em vinte daqueles que são culpados de morte, em que a bebida alcoólica não seja a causa direta ou indireta do homicídio. Bebida alcoólica e sangue andam de mãos dadas”.[5]
As mulheres eram diretamente atingidas pelas consequências do vício dos maridos, pais ou irmãos, que deixavam de cuidar de seus lares, tornavam-se violentos e traziam diversos problemas para elas. Assim, a UTMC surgiu como uma tentativa de ajudar a frear essa situação. É importante ressaltar que o Movimento de Temperança que lutava por leis secas já havia sido iniciado por homens cristãos da época.
A UTMC foi motivo da atenção de Ellen White. Vejamos o que ela fala sobre o assunto: “A União de Temperança das Mulheres Cristãs é uma organização com cujos esforços para a disseminação dos princípios de temperança podemos nos unir de boa vontade. [...] Seria bom se em nossas reuniões campais convidássemos a UTMC a tomar parte em nossos serviços. Isso as ajudaria a relacionar-se com as razões de nossa fé, e abriria o caminho para unir-nos a elas na obra de temperança. [...] O Senhor não manda que vos separeis da UTMC. Elas necessitam de toda luz que lhes podeis comunicar. Cumpre-nos apresentar uma mensagem à UTMC.”[6]
Ao observarmos esses textos é possível perceber que Ellen White entendia ser importante se relacionar com as mulheres da União de Temperança, principalmente para levar nossa fé a elas; porém, ela não deixou de alertar para o fato de que problemas permeavam esse movimento: “Foi-me mostrado que não nos devemos manter afastadas delas, conquanto não deva haver sacrifício de princípios de nossa parte.”[7] “Por vinte anos tenho procurado fazer com que a luz chegue às mulheres que trabalham na área da temperança. Mas, com tristeza, tenho visto que muitas delas estão entrando na política, e isso é contra Deus. Elas entram em debates, questões e teorias que não precisam abordar.”[8]
Ao conhecer uma líder da UTMC, Ellen White escreveu: “Fico muito feliz, minha irmã, por não ter rompido sua ligação com a UTMC. Possivelmente terá que romper essa ligação, mas não ainda, ainda não. Fale as palavras que lhe forem dadas por Deus, e o Senhor certamente operará por seu intermédio. Poderá ver muitas coisas que não aprova, mas não falhe nem desanime.”[9]
Ainda sobre algumas reivindicações feministas da época, Ellen White escreveu: “Aqueles que se sentem chamados a se unir ao movimento em favor dos direitos da mulher e do vestuário reformado podem igualmente romper toda conexão com a mensagem do terceiro anjo. O espírito que assiste a um não pode estar em harmonia com o outro.”[10] Ao que parece, Ellen White já atentava para os caminhos nebulosos que os movimentos feministas tomavam.
Segunda onda
A segunda onda do movimento feminista aconteceu por volta da década de 1960. Nesse período, o feminismo escancarou o preconceito contra a visão bíblica de complementaridade da mulher. Considerando o patriarcado bíblico um dos principais responsáveis pela suposta opressão masculina sobre as mulheres ao longo dos séculos, expoentes do movimento travaram uma guerra contra os princípios de feminilidade, casamento monogâmico e heterossexual, maternidade, castidade e sobre o papel da mulher como dona de casa.
Enquanto a Bíblia nos ensina que Eva teria um papel fundamental para o cumprimento das ordens dadas por Deus a Adão no início da criação (Gênesis 1:28; 2:18), dando a ela o mesmo título de “auxiliadora” atribuído ao próprio Deus (Salmo 33:20), o feminismo considerou esse papel indigno e secundário, sustentando que as mulheres deveriam buscar igualdade não somente nos direitos civis, mas nos papéis sociais, na liderança e, inclusive, nos vícios pecaminosos de homens não convertidos; contudo, para isso acontecer seria necessário desconstruir os papéis dados por Deus à mulher.
Simone de Beauvoir, uma das pioneiras no pensamento feminista de segunda onda, dentro de uma linha de pensamento existencialista, questionou a possibilidade de uma essência feminina. Segundo a autora, “ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino”.[11]
Para Simone, os aspectos que levavam a mulher a se dedicar ao papel de mãe, esposa e de submissão ao marido eram fruto de uma construção social negativa que a limitava a mero objeto não essencial. E cuja função era parasitária e sem utilidade para a sociedade. Ao comparar essa visão com o pensamento bíblico, enxergamos um verdadeiro abismo. Em Provérbios 31:10-31, o papel desempenhado pela mulher no lar é visto como mais valoroso do que finas joias e digno de ser louvado; a mulher virtuosa cuida com sabedoria de seu lar e de seu marido e filhos, e por isso eles são exaltados; é empreendedora, aumenta sua renda, estende a mão ao necessitado, é uma bênção para a sociedade.
Outras feministas nesse período alimentaram o mesmo pensamento de Simone. Para Betty Friedan, as donas de casa eram desmioladas e sedentas por coisas; possuíam mente débil e estavam presas a um nível de desenvolvimento infantil. “Criar filhos”, declarou Friedan, “é uma ocupação ingrata que não permite que as mulheres usem sua inteligência de uma forma que beneficie a sociedade.”[12]
Que contraste com a visão de Ellen White sobre a maternidade: “O rei em seu trono não tem função mais elevada que a mãe. A mãe é a rainha do lar. Ela tem em seu poder o modelar o caráter dos filhos, para que estejam capacitados para a vida mais alta, imortal. Um anjo não desejaria missão mais elevada; pois em fazendo sua obra ela está realizando serviço para Deus. Compreenda ela tão-somente o elevado caráter de sua tarefa, e isso lhe inspirará coragem. Compreenda ela a dignidade de sua obra e tome toda a armadura de Deus, para que possa resistir à tentação de conformar-se aos padrões do mundo. Sua obra é para o tempo e a eternidade.”[13]
A partir das obras dessas autoras, o critério de felicidade e realização pessoal da mulher ficou intimamente condicionado ao trabalho externo e remunerado, esse, sim, na visão das feministas, digno e produtivo. E ainda trazia mais uma vantagem à mulher: ela teria independência financeira, o que lhe permitiria o divórcio sempre que isso fosse desejável. Enquanto para a Bíblia a mulher deve buscar a sabedoria e, assim, edificar seu lar (Provérbios 14:1), para o feminismo a mulher deve buscar o empoderamento, e este está intimamente ligado à escolha da vida profissional em detrimento da vida doméstica, e a satisfação sexual em detrimento de uma vida santificada.
Em nenhum momento, como vemos no caso da mulher virtuosa, a Bíblia condena o trabalho externo da mulher. Pelo contrário, o reconhece como possibilidade de bênção. E no livro de Cantares encontramos uma exaltação da satisfação sexual da mulher.
Impacto pós-feminismo
A partir daqui podemos destacar outro ponto de grande impacto para a mulher pós-feminismo: a visão distorcida de “liberdade sexual”. Observando a vida libertina de muitos homens, as feministas teceram duras críticas ao duplo padrão moral da sociedade. Aos homens era permitida e até valorizada a libertinagem sexual, enquanto das mulheres cobrava-se castidade, fidelidade e pureza. Apesar de as críticas serem pertinentes, as teóricas feministas não buscaram elevar os padrões morais dos homens para resolver o problema, mas, sim, rebaixar o das mulheres.
Segundo Millet, “uma revolução sexual exigiria, antes de mais nada, talvez, o fim das inibições e dos tabus sexuais, especialmente aqueles que mais ameaçam o casamento monogâmico tradicional: a homossexualidade, a ilegitimidade, as relações sexuais pré-matrimoniais e na adolescência”.[14]
As mudanças nos padrões sexuais femininos precisavam trazer consigo soluções para a consequência natural dada pelo Senhor para o sexo, ou seja, os filhos. Como seria possível desfrutar de uma vida de total “liberdade sexual” sem se preocupar com as “amarras” da maternidade? A solução encontrada foi o controle de natalidade, que consistia desde o convencimento de que a maternidade mantinha a mulher numa condição de oprimida, passando pelos anticoncepcionais e chegando finalmente ao aborto, e este último seria o ápice da emancipação da mulher. Bell Hooks afirma “não ser possível ser antiaborto e defensora do feminismo”.[15] Surge, assim, o conceito tão defendido atualmente: “Meu corpo, minhas regras.”
Logo, o feminismo entrava em conflito com mais dois princípios bíblicos: primeiro, o que afirma que nosso corpo não nos pertence, é templo do Espírito Santo; e o não matarás, que se estende a toda criatura humana, inclusive aqueles ainda informes (Salmo 139:13-16).
Questões atuais
Chegando aos nossos dias, o feminismo ganha ares cada vez mais parecidos com uma espécie de religião. A mulher é muitas vezes divinizada e é dado ao sexo masculino a condição de vilão e responsável por todas as perversidades da sociedade, ignorando a explicação divina de que homens e mulheres são pecadores e necessitam da misericórdia de Deus.
Teóricas feministas entendem ser necessário o fim das religiões que defendem o patriarcado bíblico e que concedem ao homem um papel, segundo elas, superior ao da mulher. “Não é possível haver uma verdadeira transformação feminista em nossa cultura sem a transformação das crenças religiosas. [...] Até que isso aconteça, religiões patriarcais organizadas sempre destruirão as conquistas feministas.”[16] “Vamos esquecer o mítico Jesus e olhar para o incentivo, consolo e a inspiração de mulheres reais. Dois mil anos de domínio patriarcal sobre a sombra da cruz deveriam ser suficientes para transformar as mulheres na salvação feminista do mundo.”[17]
A autora Constanza Miriano levanta a seguinte questão: “Por que agora que conquistamos, pelo menos neste lado do mundo, o direito de ter tudo, continuamos infelizes? Ou até mais do que antes?”[18] Penso que a resposta está justamente no oposto do pensamento feminista. Deixamos de desejar o ideal proposto por Deus para nós e temos nos apegado a promessas terrestres de realização pessoal. Nos esquecemos dAquele que nos diz: “Porque sou Eu que conheço os planos que tenho para vocês, diz o Senhor, planos de fazê-los prosperar e não de causar dano, planos de dar a vocês esperança e um futuro” (Jeremias 29:11).
É verdade que a vida ao longo da história não tem sido fácil; é verdade que muitas de nós, mulheres, sofremos nas mãos de homens que não honraram a confiança que o Senhor depositou nas mãos deles, mas a certeza que temos, enquanto cristãos, é que a solução para os problemas deste mundo não está em nenhuma ideologia, mas na conversão individual, e que este mundo só será transformado, de modo que mulheres e homens deixarão a maldade e o sofrimento, quando nosso Redentor vier nos buscar – nesse dia Ele sarará todas as nossas feridas e o mal já não existirá.
Suelen Palombo é historiadora e professora.
Referências:
[1] Bell Hooks, O Feminismo é Para Todo Mundo, p. 15.
[2] Carolyn McCulley, Feminilidade Radical, p. 52.
[3] Elizabeth Cady Stanton, Eighty Years and More, Humanity Books, 2002, p. 43, 44.
[4] Harriet Isecke, Susan B. Antony y Elizabeth Cady Stanton, Primeiras Sufragistas, p. 26.
[5] Ellen White, Temperança, p. 24.
[6] Ibid., p. 229-231.
[7] Ibid., p. 229.
[8] Ellen White, Filhas de Deus, p. 124.
[9] Ibid., p. 125.
[10] Ellen White, Testemunhos Para a Igreja, v. 1, p. 421, 422.
[11] Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo, v. 2, p. 9.
[12] Phyllis Schlafly, O Outro Lado do Feminismo, p. 49.
[13] Ellen White, Conselhos Para a Igreja, p. 176.
[14] Kate Millet, Política Sexual, p. 10.
[15] Bell Hooks, O Feminismo é para todo mundo, p. 23.
[16] Ibid., p. 154.
[17] Ana Caroline Campagnolo, Feminismo Perversão e Subversão, p. 300
[18] Constanza Miriano, Quando Éramos Mais Femininas, p. 17.
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