Separação de Igreja e Estado
Entenda o que é a separação entre Igreja e Estado e o posicionamento adventista a respeito.
No site da ACNUR Brasil (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), a chamada é clara: “Refugiados Rohingya são forçados a escapar da violência em Mianmar a um ritmo impressionante desde 2017 – e os números continuam crescendo. Cerca 961.729 refugiados Rohingya vivem em Bangladesh. (Dados de 30 de junho de 2023)”[1]. A matéria jornalística apresenta a triste realidade dessa minoria étnico-religiosa.
Leia também:
De acordo com a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), os Rohingya são uma minoria muçulmana em Mianmar, país majoritariamente budista. Desde 1962, ciclos recorrentes de violência e a negação de seus direitos fizeram com que quase um milhão de membros da comunidade Rohingya busquem refúgio em Bangladesh, tornando-se o maior campo de refugiados do mundo.
Mianmar possui uma população majoritariamente budista, e o governo é intolerante com religiões não budistas. Conforme o Religious Freedom World Report 2021, publicado no site oficial da International Religious Liberty Asociation, o governo de Mianmar exige que cada pessoa carregue um cartão de identificação indicando a religião preferida. Embora a constituição supostamente garanta a liberdade de religião, as autoridades violam essa liberdade. O budismo Theravada é priorizado em detrimento de outras religiões, e pessoas que desejam ingressar no serviço público ou militar devem ser budistas4.
O que acontece em Mianmar é uma ilustração da realidade quando não existe separação entre Igreja e Estado, ou quando essa separação é violada. Historicamente, sempre que Igreja e Estado não atuam separadamente, e todas as vezes que um Estado adota uma religião oficial, invariavelmente o resultado é intolerância religiosa, discriminação, supressão de direitos e violência contra grupos minoritários.
A posição dos adventistas do sétimo dia
O terceiro marco referencial adventista para a liberdade religiosa, encontrado no Manual Prático para Diretores de Liberdade Religiosa de Igreja Local, da Divisão Sul-americana (DSA) da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD), trata da separação entre Igreja e Estado. Está escrito: “‘E Jesus, respondendo, disse-lhes: Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus’ (Marcos 12:17). Cada poder tem o seu espaço e autoridade. A Igreja Adventista do Sétimo Dia reconhece e respeita o Estado, mas trabalha para que atuem separadamente.”[2]
O livro Declarações da Igreja traz a posição dos adventistas sobre o assunto: “A Igreja Adventista defende a liberdade religiosa a todos, bem como a separação entre Igreja e Estado.”[3] A fundamentação para esta posição, acha-se no capítulo A Relação entre Igreja e Estado: “Deus é amor. Seu governo universal é baseado na obediência voluntária por parte de Sua criação. Essa obediência é despertada por Sua benevolência magnífica. Somente uma fé que repousa no coração humano e apenas ações motivadas por amor são aceitáveis a Deus. O amor, no entanto, não está sujeito à regulamentação civil. Não pode ser despertado por decreto nem sustentado por estatuto. Portanto, todos os esforços para legislar sobre a fé estão, pela própria natureza, em oposição aos princípios da verdadeira religião e, consequentemente, em oposição à vontade divina.”[4]
A posição adventista destaca a conduta de Jesus Cristo, que nunca usou da força para implantar Seu reino neste mundo e nem para fazer avançar a pregação do Evangelho. Outras declarações encontradas são vitais para a compreensão e solidificação do pensamento adventista e defendem uma liberdade religiosa para todos.
Em resumo, a posição adventista é assim definida: “Como cristãos, os adventistas reconhecem o papel legítimo dos governos organizados na sociedade. Apoiamos o direito do Estado de legislar nas questões seculares e apoiamos o consentimento com tais leis. Quando nos deparamos com uma situação em que a lei terrena conflita com os ordenamentos bíblicos, no entanto, concordamos com a determinação bíblica de que temos que obedecer a Deus em vez de prestar obediência ao ser humano.”[5] Essa ordenação bíblica encontra-se em Atos 5:29: “Então, Pedro e os demais apóstolos afirmaram: Antes, importa obedecer a Deus do que aos homens.”[6]
Aspectos históricos
Marcos De Benedicto, em seu livro Política, inseriu um registro histórico sobre a separação de Igreja e Estado, que enriquece a compreensão do assunto. Escreveu ele: “Desde os primórdios, o adventismo adotou a defesa radical da separação entre Igreja e Estado. [...] essa posição surgiu como reflexo do próprio legado de liberdade por parte dos peregrinos puritanos que zarparam da Inglaterra em 1620 para o Novo Mundo por causa de perseguições religiosas na Europa.”[7]
Na sequência, De Benedicto registra como os Estados Unidos chegaram à consciência da separação entre Igreja e Estado, com destaque para Roger Williams, William Penn, Isaac Backus e Thomas Jefferson, cuja luta e dedicação foram recompensadas pela inclusão, em 1791, da Primeira Emenda[8] na Constituição Norte-americana, aprovada em 1789, garantindo assim a separação oficial entre Igreja e Estado.
“Um século mais tarde, os adventistas entrariam no debate sobre Igreja e Estado. Em 1888 Alonzo T. Jones (1850-1923), brilhante editor, pregador e professor, fez uma notável defesa da separação entre Igreja e Estado ao discursar perante uma comissão do Senado norte-americano, que estava discutindo um projeto de lei dominical de autoria do senador Henry William Blair.”[9]
Na defesa feita por Jones diante da Comissão de Educação e Trabalho do Senado, ele marcou uma clara distinção entre o que pertence a Deus e ao que pertence a César. Defendeu a relação direta do indivíduo com Deus, afirmando que qualquer lei que legislasse sobre dias de guarda e cultos, fosse uma lei sabática ou dominical, seria anticristã.
A tensão ameaçadora da imposição de um dia específico para cultos, nos Estados Unidos, conduziu os adventistas a adotarem a liberdade religiosa como um ministério de grande relevância em sua organização. “A entrada da denominação na arena da liberdade religiosa foi entusiasticamente apoiada por Ellen White. Ela viu o tema tanto do ponto de vista histórico quanto profético, bem como reagiu às condições contemporâneas.”[10]
Ellen White
Algumas declarações de Ellen G. White acerca desse assunto são emblemáticas e merecem nossa consideração. “Ela declarou que Satanás ‘trabalha para restringir a liberdade religiosa’ (T7, 180), e que os funcionários do governo que aprovam tais leis restritivas assumem um ‘direito que só a Deus pertence’ (O Desejado de todas as nações, página 630). [...] Motivando os adventistas a resistir vigorosamente à evolução nesse sentido, ela disse: ‘É nosso dever, ao vermos os sinais do perigo que se aproxima, despertarmos para a ação’. Ela também acrescentou: ‘Não estamos cumprindo a vontade de Deus se nos deixarmos ficar em quietude, nada fazendo para preservar a liberdade de consciência’ (Testemunhos Seletos, volume 5, página 713).”[11]
Com o apoio total de Ellen G. White, os adventistas assumiram uma posição de vanguarda em ações práticas em favor da liberdade religiosa. Primeiramente lançaram a revista The American Sentinel[12](A Sentinela Americana), em 1886, com o compromisso de defender o direito e a liberdade religiosa para todos. Seus editores se opuseram a uma variada gama de atividades governamentais que, segundo eles, violavam o princípio da separação entre Igreja e Estado. Logo depois, em 1893, foi criada uma associação em defesa, promoção e proteção da liberdade religiosa.
John Grass, que por 20 anos (1995-2015) dirigiu o Departamento de Assuntos Públicos e Liberdade Religiosa, na sede mundial da Igreja Adventista, em Silver Spring, Maryland, EUA, informa que: “Em 1889, durante uma assembleia no tabernáculo de Battle Creek, 110 líderes adventistas decidiram estabelecer uma nova associação para promover e defender a liberdade religiosa. A Igreja era muito ativa nesse campo. Já havia publicado a revista The Sentinel, mas havia a necessidade de uma associação que pudesse responder, de forma mais específica, aos desafios contra a liberdade religiosa.”[13].
Inicialmente foi chamada de National Religious Liberty Asociation (Associação Nacional de Liberdade Religiosa), mas em 1893, passou a ser conhecida como International Religious Liberty Asociation (Associação Internacional de Liberdade Religiosa), devido à excelente aceitação fora dos Estados Unidos. Depois, vieram outras inciativas como o estabelecimento de uma biblioteca de liberdade religiosa e a criação, em 1901, do departamento de Assuntos Públicos e Liberdade Religiosa, na sede mundial da Organização.
No Brasil
A laicidade ganhou espaço nas discussões políticas no Brasil, com enorme repercussão, a partir da segunda metade do período do império. O debate resultou na promulgação do Decreto nº 119-A, de 07 de janeiro de 1890, que influenciou diretamente o princípio da separação entre Igreja e Estado na primeira Constituição Republicana brasileira, em 1891.
“O decreto proibiu a participação e a intervenção da autoridade federal e dos Estados federados nos assuntos religiosos, consagrou o ideal de plena liberdade de cultos, extinguiu o padroado e estabeleceu algumas providências sobre a conturbada relação que havia entre Igreja Católica e o Estado brasileiro.”[14]
A liberdade religiosa, com separação de Igreja e Estado, foi assegurada nas demais edições da Constituição, publicadas nos anos de 1934, 1937, 1946 e 1967. Atualmente, o princípio da liberdade religiosa está protegido tanto no âmbito da Constituição Federal de 1988 quanto no âmbito de outras legislações. Os princípios que tratam da liberdade religiosa na Constituição de 1988, encontram-se no Artigo 5º e incisos VI e VIII.
No artigo 19 da atual Constituição, encontra-se assegurado o princípio da separação entre Igreja e Estado, onde se pode ler: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;
II - recusar fé aos documentos públicos;
III - criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.”[15]
Conclusão
Na discussão sobre a separação de Igreja e Estado, há outros campos a considerar, como a participação de membros da Igreja Adventista no governo, representação perante governos e entidades internacionais, e o recebimento de fundos públicos. A leitura da posição oficial da igreja no capítulo A Relação entre Igreja e Estado do livro Declarações da Igreja, publicado em 2016 pela Casa Publicadora Brasileira, é recomendada.
Outra dimensão a ser explorada é a escatológica. A Igreja Adventista tem uma visão peculiar baseada nos livros bíblicos de Daniel e Apocalipse. Esse tema foi tratado por Marvin Moore na obra Apocalipse 13 (Casa Publicadora Brasileira, 2013) e por Vanderlei Dorneles em O Último Império (Casa Publicadora Brasileira, 2012).
Desde seus primórdios, a posição oficial dos adventistas tem sido defender, promover e proteger a liberdade religiosa para todos. A convicção sobre a separação entre Igreja e Estado sempre fez parte de seus ideais. Sem liberdade religiosa, não há dignidade humana nem cumprimento da missão. A separação não implica em inimizade ou oposição ao Estado e suas leis, mas para os adventistas algo é muito claro – Deus em primeiro lugar, quando a legislação contradiz a revelação bíblica.
Somos gratos a Deus por vivermos em um país com ampla liberdade religiosa, permitindo que a Igreja Adventista exerça suas prerrogativas sem embaraço estatal. Os membros podem viver a fé integralmente, salvo raras exceções. Desfrutamos de um relacionamento respeitoso com as autoridades e outros grupos religiosos. Louvemos ao Senhor por tantas dádivas. Oremos em favor das autoridades e agradeçamos por vivermos neste país "abençoado por Deus e bonito por natureza".
Referências:
[1] https://www.acnur.org/portugues/rohingya/
[2] www.adventistas.org/liberdadereligiosa
[3] DE BENEDICTO, Marcos (ed). Declarações da Igreja. 3. ed. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2016, p. 135.
[4] Idem, p.154
[5] Idem, p. 155
[6] Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida, Revista e Atualizada no Brasil, 2. ed. São Paulo, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 1997.
[7] DE BENEDICTO, Marcos. Política. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2022, p. 65.
[8] https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs20129807.htm
[9] Ibidem.
[10] FORTIM, Denis e MOON, Jerry (ed). Enciclopédia Ellen G. White. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2018, p. 1034.
[11] Idem, p. 1035.
[12] Idem, p. 984
[13] GRAZ, John. Embaixador da Igreja. São Paulo, SP: Luz Editora, 2015, p. 82,
[14] Bittencourt, Josias J. Separação Entre Religiões E Estado: Utopias E Realidades. In: Lellis, Lelio M. e Hees, Carlos A. (Org). Fundamentos Jurídicos da Liberdade Religiosa. Engenheiro Coelho, SP: UNASPRESS, Imprensa Universitária Adventista, 2016, p. 110-11.
[15] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm