Babilônia não começa perseguindo
O método para ganhar a confiança dos povos cativos com as guerras não era a ditadura, mas o convencimento
Nos textos anteriores, você encontrará uma série com base em meu livro, Herdeiros do Reino, lançado pela Casa Publicadora Brasileira (CPB). Baseado no livro bíblico de Daniel, apresento lições que extraí dele para minha vida. Abaixo, compartilho com você uma versão resumida do terceiro capítulo. Caso ainda não tenha lido os demais, acompanhe-os aqui.
Quando meus filhos eram bem pequenos, nós começamos a estimulá-los a contar, em nosso culto familiar, as histórias bíblicas que eles já conheciam. Um dia, minha filha disse que queria contar a história de Daniel. Nós ficamos surpresos, pois ela havia ouvido aquela história há apenas algumas semanas, mas ficamos atentos, ouvindo a sua versão da história desse herói bíblico.
Então, com sua voz infantil, ela começou: “Hoje eu vou contar a história de Daniel. Daniel era um homem que não queria orar, por isso o rei jogou ele em um buraco cheio de leões e os leões protegeram ele do anjo. Fim!”. Como eu sorri naquele dia! Ainda hoje, a lembrança do seu rostinho fazendo caras enquanto enfatizava a história me faz sorrir.
Leia também:
Minha filha pode ser desculpada por essa versão da história de Daniel. Imagino que ela não seria capaz de criar uma grande heresia com seu ponto de vista, em que os leões eram os verdadeiros heróis. No entanto, muitos cristãos adultos têm criado ao longo das eras interpretações distorcidas do livro de Daniel. Infelizmente, muitas vezes o que está por trás disso é a intenção satânica de tornar o livro apenas um apetrecho literário da antiguidade ou uma excentricidade de lunáticos propensos a teorias da conspiração.
Só podemos nos livrar desses perigos se entendermos a maneira correta de interpretar os livros proféticos. Um princípio de interpretação profética é chamado de “Harmonia da Escritura”. Esse princípio é resumido no seguinte ponto: “Visto que toda a escritura é inspirada pelo mesmo Espírito e tudo nela é palavra de Deus, existe uma unidade e harmonia fundamental entre suas diversas partes”¹.
Em outras palavras, existe uma harmonia entre os livros proféticos - um livro não contradiz o outro e um livro esclarece e amplia a visão do outro. Nesse sentido, os livros de Daniel e Apocalipse estão intimamente ligados. Uma ligação muito importante entre os dois livros são as palavras que o Apóstolo João usou e que só podem ser plenamente compreendidas se forem estudadas à luz dos acontecimentos descritos no livro de Daniel. Uma dessas palavras é “Babilônia”. João menciona essa palavra seis vezes no Apocalipse (14:8; 16:19; 17:5; 18:2, 10 e 21). E sempre que ela é mencionada, envolve uma forte ideia de catástrofe, perseguição ou apostasia. Porém, é interessante notar que no tempo de João não existia um país ou um reino chamado Babilônia.
Histórias conectadas
Então, se não existia a Babilônia no tempo de João e não existirá um país chamado Babilônia até o tempo do fim, por que João escreveu os seguintes textos: “E Deus se lembrou da grande Babilônia para dar-lhe o cálice do vinho do furor da sua ira” (Apocalipse 16:19). “Ai! Ai de você, grande cidade, Babilônia, cidade poderosa! Pois em uma só hora chegou o seu juízo” (Apocalipse 18:10)?
Lembra do que falei acima sobre a harmonia entre os livros de Daniel e Apocalipse? Pois é, quando João menciona Babilônia no Apocalipse, ele está falando de um poder que, no tempo do fim, irá maltratar o povo de Deus, irá intentar contra a verdade e a verdadeira adoração. Para deixar bem claro aos seus leitores como seria esse poder, ele usa o exemplo da Babilônia. Para compreendermos a Babilônia histórica, precisamos relembrar alguns fatos acerca desse império. Nabucodonosor foi o seu principal monarca e, embora fosse um homem impiedoso, ele possuía inteligência e discernimento suficientes para não adotar uma política de opressão total ao governar os povos conquistados. Outros impérios, quando conquistavam uma cidade, destruíam a maioria dos habitantes, obrigavam os sobreviventes a servirem como escravos e adorarem os deuses do país vitorioso.
Babilônia, não. Para começar, se não houvesse resistência, eles não destruíam as cidades conquistadas. Esse é um dos motivos pelo qual o profeta Jeremias pediu várias vezes para que Jerusalém não resistisse a Babilônia nem tentasse pedir ajuda militar ao Egito. Em seguida, eles levavam os jovens mais capazes, “tanto da linhagem real como dos nobres” (Daniel 1:3), como cativos para a Babilônia. Aí acontecia a verdadeira artimanha da Babilônia.
Confusão
Foi nesse contexto que Daniel e seus amigos foram levados para lá. Imagine aqueles quatro jovens indo para a Babilônia como exilados e pensando: “Quando chegarmos na Babilônia seremos escravizados, seremos chicoteados, seremos espancados e em seguida seremos mortos”. Imagine a surpresa deles ao chegarem na Babilônia e não encontrarem cadeias, chicotes ou escravidão. O que aconteceu com eles estava fora de toda a compreensão de um exilado. Eles foram recebidos com honras e viram diante deles uma mesa com a alimentação tirada das finas iguarias da mesa real e do vinho que o próprio Nabucodonosor bebia. Em seguida, souberam que passariam por um processo de assimilação cultural, com todo o conhecimento babilônico, ao longo de três anos, e ao final desse período, serviriam ao rei.
Nesse momento, Daniel e seus amigos perceberam qual era o verdadeiro método de conquista da Babilônia. Eles entenderam que a Babilônia não começa perseguindo, e sim confundindo. Essa era a grande estratégia do império: envolver os exilados de tal maneira, que ao final eles seriam mais babilônicos do que hebreus.
É exatamente isso que o poder descrito por João no livro do Apocalipse tenta fazer com o povo de Deus no tempo do fim. Eu percebo muitas pessoas enfatizando as ações da Babilônia em relação à perseguição e ao decreto dominical, mas o que precisamos entender é que Babilônia só persegue quem ela não consegue confundir.
Referências:
1 – Ed. Raoul Dederen, Tratado de Teologia Adventista do Sétimo Dia (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2011), p. 74.