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Coluna | Wilson Borba

Em Lucas 23:54, o sábado “amanhecia” ou “estava para começar”?

Uma tradução incorreta pode trazer interpretações incorretas. Entenda


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sábado
Ao estudar a Bíblia, é necessário levar em conta o contexto da época e os costumes dos autores que a escreveram (Foto: Shutterstock)

O objetivo deste artigo é esclarecer o significado de um idiomatismo[1] encontrado em Lucas 23:54. O teólogo Louis Berkhof declara que “Toda língua tem certas expressões características chamadas idiomatismos”.[2] Segundo o Dicionário Terminológico, “...a interpretação do significado de uma expressão idiomática não pode se basear apenas numa leitura literal dos seus constituintes, mas implica sempre uma leitura fraseológica”.[3] Em outras palavras, para entender um idiomatismo, geralmente “Uma palavra só não basta”.[4] Observemos Lucas 23:54 na versão Almeida e Corrigida.[5] “Era o dia da preparação e amanhecia o sábado”.  O verbo ἐπέφωσκεν (epéfosken), traduzido neste texto por ‘amanhecer’, significa literalmente “crescia em luz”, “luzia”, mas não significa “amanhecer”.

Conforme Champlin, “Trata-se de uma expressão idiomática dos judeus para aludir às horas vespertinas, cerca das 18 horas, pois para eles o dia começava no princípio da noite, e não à meia-noite, conforme é o nosso costume”.[6] Respeitadas traduções não se alinham com a versão Almeida Corrigida. Vejamos a seguir.

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Versão Almeida Atualizada[7]: “Era o dia da preparação, e começava o sábado”. King James Version[8]: “That day was the Preparation, and the sabbath drew near (Aquele era o dia da Preparação, e o sábado se aproximava). Versão dos Monges Maredsous (Bélgica) [9]: “Era o dia da Preparação e já ia principiar o sábado”. La Biblia de las Américas[10]: “Era el día de la preparación, y estaba para comenzar el día de reposo”. A Bíblia de Jerusalém[11] assim traduziu Lucas 23:54: “Era o dia de Preparação, e o sábado começava a luzir”, mas fez a seguinte explicação em uma nota de rodapé: “j) “começava a luzir”: provável alusão ao costume judaico de acender as lâmpadas no começo do sábado (ao anoitecer).[12] E, na mesma nota, a Bíblia de Jerusalém sugere outra tradução: “o sábado já despontava”.[13]

Se alguém quiser entender Lucas 23:54 deverá interpretá-lo biblicamente, e não de acordo com costumes pagãos ou ocidentais recentes. Devemos ter em mente pelo menos três coisas: 1) “A Bíblia claramente menciona que a criação da Terra abrangeu um período literal de sete dias contínuos de 24 horas (Gênesis 1:5, 8, 13, 19, 23, 31; 2:1-3; Êxodo 20:8-11). Na Bíblia hebraica, sempre que a palavra yon (dia) é precedida por um numeral ordinal, refere-se a um dia literal de 24 horas.[14] 2) O dia bíblico segue o padrão “tarde e manhã”, ou seja, pôr do sol a pôr do sol da semana da Criação, conforme os textos já mencionados. Observemos o texto: “Houve tarde e manhã, o primeiro dia” (Gênesis 1:5). Tarde refere-se à parte escura, e manhã à parte clara de um dia literal. Conforme Jirí Moskala declara, “A frase peculiar “e foi a tarde e a manhã” sempre precede a um dia particular da criação (Gn 1:5, 8, 13, 19, 23, 31). Esta expressão delimita um tempo, implicando a existência de um dia consistente em um período de 24 horas”.[15]

Alterações históricas

Em relação ao sábado sagrado, a ordem divina foi: “De uma tarde a outra tarde, celebrareis o vosso sábado” (Levítico 23:32; ver também Neemias 13:19). Foi o que também aconteceu naquele sábado em que Jesus descansou na sepultura. (3) Pode parecer estranho a ocidentais o início do sábado ao pôr do sol de sexta-feira. Entretanto, “A convenção de iniciar cada dia à meia-noite tem origem com os romanos”[16], o que configura-se em uma invenção humana e pagã. Segundo Mourão, do Museu de Astronomia e Ciências Afins do Rio de Janeiro, “Os babilônios principiavam o dia com o nascimento do sol, contando 24 horas sem interrupção, no que foram seguidos por muitas nações orientais. Em certa época, os romanos começaram a dividir o dia em dois grupos de 12 horas cada um: 12 horas de claridade e 12 horas de trevas. No início, os italianos contavam a partir do pôr do sol.

No entanto, como o desaparecimento desse astro varia a cada dia, era necessário acertar continuamente os relógios. Foram os astrônomos que, contando 24 horas seguidas, adotaram o princípio ao meio-dia. Ptolomeu fixou o início ao meio-dia, Hiparco à meia-noite, e Copérnico novamente ao meio-dia. Tal costume se perpetuou até o início do século 20, quando os astrônomos decidiram iniciar à meia-noite.

De fato, antes de 1925, o dia astronômico começava ao meio-dia, 12 horas mais tarde que o início do dia civil na mesma data. Desde 1925 o dia astronômico passou a concordar com o dia civil, dia solar que começa à meia-noite”.[17] Quão simples e mais fácil é o plano divino de pôr do sol a pôr do sol, conforme as Escrituras! Assim, não estamos dormindo, mas acordados, e podemos com gratidão a Deus saudar a chegada de um novo dia, especialmente o dia do Senhor (Isaías 58:13; Marcos 2:28; Apocalipse 1:10).

Observância do sábado

Quanto ao costume de acender lâmpadas na chegada do sábado, declara o A Commentary on the New Testament From the Talmud and Hebraica: “Velas sabáticas deveriam ser acendidas em honra do sábado. Homens e mulheres eram obrigados a acender uma vela em suas casas no dia de sábado. Se um homem não tivesse pão para comer, contudo deveria implorar de porta em porta para obter óleo e estabelecer a sua luz".[18] Outra regra importante, além de sempre buscar a melhor tradução, é examinar o contexto literário imediato.[19]

Tomando em conta estes aspectos, a Almeida Corrigida não é a melhor tradução em relação ao referido texto. Ao usar a expressão “amanhecer”, esta versão não leva em conta outras traduções melhores, e nem o contexto imediato de Lucas 23:54. Por outro lado, em relação ao contexto mais amplo, a mesma versão cometeu uma inaceitável incoerência hermenêutica, pois em Mateus 28:1 traduziu o verbo ἐπέφωσκεν (epéfosken) por “entrava”, e depois em Lucas 23:54 veio a traduzir o mesmo verbo por “amanhecia”.

A tradução Almeida Corrigida, em Lucas 23:54, não é a mais apropriada, pois não se trata de amanhecer como entendemos hoje, mas do princípio de um novo dia, conforme o antigo horário bíblico. Para Walvoord e Zuck, “... Jesus morreu no dia de preparação (que a maioria assume que foi sexta-feira, antes do dia de repouso)”. [20] Já Leon Morris lembra que “O dia da preparação era sexta-feira, o dia em que os homens preparavam-se para o sábado. Não se podia realizar trabalho algum no sábado, e com a sexta-feira chegando ao fim, e com o sábado para começar no momento do pôr do sol, o sepultamento tinha de ser completado com certa pressa”.[21]

Em acordo, William Hendriksen, referindo-se à distância do calvário ao sepulcro, afirma: “Provavelmente a distância era curta, porque era o dia da preparação, isto é, a sexta-feira, e dado que anoitecia, isto é, o começo do dia de repouso, o corpo de Jesus não podia ser sepultado em uma tumba distante. A falta de tempo não haveria permitido”.[22]

Finalmente, enfatizando outro aspecto, Kenneth Strand também recorda que “Lucas 23:54 fornece um exemplo da observância do sábado no dia em que Jesus foi sepultado. As mulheres, depois de observar onde o corpo dEle fora posto, prepararam aromas e bálsamos”, mas no sábado “descansaram, segundo o mandamento.” O “mandamento” que elas observaram era obviamente o preceito do decálogo referente ao sábado.

A forma constante como observavam o sábado, mesmo em face da morte de Jesus, mostra que estavam seguindo o próprio exemplo do Salvador na observância desse dia. Também lança por terra a teoria de que Jesus adotava uma atitude negativa para com o sábado, a qual teria supostamente lançado a base para rejeição posterior do mandamento”.[23]


Referências:

[1]Expressão idiomática, idiomatismo ou idiotismo são expressões sinonímicas. Dicionário priberam, https://www.priberam.pt/dlpo/idiomatismo (Consultado em 19 de maio de 2017, 19:29h).

[2]Louis Berkhof, Princípios de interpretação bíblica, 3ª ed. (Rio de Janeiro, Juerp: 1981), 93.

[3]Dicionário terminológico, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/a-diferenca-entre-proverbio-e-expressao-idiomatica/32210 (Consultado em 19 de maio de 2017, 10h52).

[4]Moisés Batista da Silva, “Uma palavra só não basta: um estudo teórico sobre as unidades fraseológicas”, http://www.revistadeletras.ufc.br/rl28Art02.pdf (Consultado em 19 de maio de 2017, 13:09h).

[5]Almeida Revista e Corrigida (Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2009).

[6]Russell Norman Champlin, O novo testamento interpretado, 6ª ed. (São Paulo, SP: Milenium Distribuidora Cultural Ltda, 1987), 2:234.

[7]Edição Revista e Atualizada da Bíblia Sagrada (ARA), traduzida por João Ferreira de Almeida, 2ª ed. (Sociedade Bíblica do Brasil, 1993).

[8]King James Version (Nashville, TE: Thomas Nelson, Inc, 1985).

[9]Bíblia Sagrada, Versão dos Monges de Maredsous (Bélgica), 52ª ed.  (São Paulo, SP: Editora “Ave Maria”, 1957).

[10]La Bíblia de las Américas (La Habra, CA: The Lockman Foundation, 1995).

[11]Bíblia de Jerusalém (São Paulo, SP: Edições Paulinas, 1973).

[12]Ibíd., nota referente a Lucas 23:54, 1976.

[13]Ibíd.

[14]“Jirí Moskala, “¿Los días de la creación, eran periodos de 24 horas o de duración indefinida?”, Interpretación de las Escrituras, editado por Gerhard Pfandl (Buenos Aires: Asociación Casa Editora Sudamericana, 2010), 108, 109. A seguir, Jirí Moskala. Ver também: Wilson Borba, “Que significa a expressão “ex-nihilo”? Os dias da criação descritos em Gênesis 1 foram dias literais ou representam um período de tempo mais longo?”, Revista do Ancião, abril-junho de 2015, 31.

[15]Jirí Moskala, 109.

[16]“Meia-noite”, https://pt.wikipedia.org/wiki/Meia-noite (Consultado em 13 de maio de 2017, 14:58h).

[17]Ronaldo Rogério de Freitas Mourão, “Porque o novo dia é contado a partir da meia-noite?”, http://www1.folha.uol.com.br/ fsp/1997/1/19/ mais!/ 30.html (Consultado em 13 de maio de 2017, 15:08h).

[18]A Commentary on the New Testament From the Talmud and Hebraica by John, http://www. biblestudytools.com/aa/lucas/passage/?q=lucas+23:54-56 (Consultado em 13 de maio de 2017, 16:05h).

[19]Ibid., 21.

[20]John F. Walvoord e Roy B. Zuck, orgs., El conocimiento bíblico, un comentario expositivo: Nuevo Testamento, tomo 1: San Mateo, San Marcos, San Lucas (Puebla, México: Ediciones Las Américas, A.C., 1995), 346.

[21]Leon L. Morris, Lucas introdução e comentário, 1ª ed. (São Paulo, SP: Sociedade Religiosa Edições Vida Nova1983), 311.

[22]William Hendriksen, Comentario al Nuevo Testamento: El Evangelio Según San Lucas (Grand Rapids, MI: Libros Desafío, 2002), 967.

[23]Kenneth A. Strand, “O Sábado”, Tratado de teologia adventista do sétimo dia, editado por Raoul Dederen, 1ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2011), 560.

Wilson Borba

Wilson Borba

Sola Scriptura

As doutrinas bíblicas explicadas de uma forma simples e prática para o viver cristão.

Bacharel em Teologia pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp), campus São Paulo. Possui mestrado e doutorado na mesma área pelo Unasp, campus Engenheiro Coelho. Possui um mestrado em Sagrada Escritura e outro doutorado em Teologia pela Universidade Peruana Unión (UPeU). Ao longo de seu ministério foi pastor distrital, diretor de departamentos, professor e diretor de seminários de Teologia da Igreja Adventista na América do Sul.