Quando Deus vai para o exílio
Entenda o significado do exílio de Israel e como a fé do povo se manteria sob o domínio das nações de Daniel
Na coluna Brexit: Ferro e barro ao extremo, prometi que no artigo seguinte analisaríamos “com mais detalhes a fascinante visão de Daniel 2 e como ela se relaciona com o panorama atual”. Porém, fui despertado para abordar as leis dominicais na Argentina e cá estamos duas colunas depois. O assunto era o Brexit, ou seja, a saída do Reino Unido da União Europeia, que ecoa a sentença profética de Daniel: “não se ligarão um ao outro” (2:43).
Além da lição básica sobre a sequência de impérios – Babilônia, Medo-Pérsia, “Grécia” (macedônico) e Roma –, o que mais podemos aprender? Que lições Deus quis ensinar ao tirano pagão e, por extensão, ao mundo neopagão da atualidade? Que certezas Deus quis imprimir na mente de Seus filhos cativos em Babilônia, assim como quer gravar no coração dos “cativos” de um mundo hostil? De que maneira o compromisso com Seu povo e com a humanidade, Sua presciência e soberania interagem de forma única nessa seção da Bíblia?
Nesta coluna e nas seguintes vamos analisar três aspectos relacionados à profecia do capítulo 2 de Daniel, começando do início do livro.
Senhor de todos
Nabucodonosor, imperador babilônico responsável pela destruição de Judá, Jerusalém e o templo (Daniel 1:1, 2) estendeu seu domínio da Mesopotâmia ao Egito, tendo o reino de Judá no meio do caminho entre essas duas civilizações. Como o nome Nəvukhadnetsar (“Nebo protege a fronteira”) indica, ele era um servo do deus Nebo (Nabu), assim como de Marduque, o deus principal, e de todo o panteão babilônico. Curiosamente, o nome Nabu significa “chamar” em acadiano, uma língua babilônica antiga. Em aramaico e no hebraico, significa “aquele que foi chamado” ou “aquele que pode profetizar” – nada mais relacionado à temática do livro de Daniel.
Na mentalidade oriental antiga, os confrontos entre as nações representavam o conflito entre seus deuses. Em caso de invasão inimiga e derrota, como a que Judá sofreu em 605, 597 e 586 a.C. para os babilônios, a desgraça era entendida como a derrota do deus perdedor para a divindade vencedora. Nesse caso, Nebo teria triunfado sobre o Deus israelita.
O livro de Daniel inicia com esse pano de fundo: Jeoaquim, Judá e os “utensílios da casa do Senhor” ficam à mercê de Nabucodonosor, que sitia Jerusalém, mata o rei judeu e leva peças do templo de Deus para a “terra de Sinar, para a casa do seu deus” (Daniel 1:1, 2). Porém, o autor bíblico deixa claro que foi o Senhor (Yahweh) quem os “entregou” (verso 2).
Note que o detalhe dos utensílios é retomado no capítulo 5, quando Belsazar faz um banquete com eles, selando seu próprio fim, junto com o do império babilônico. Assim, na perspectiva teológica de Daniel, ao contrário da mentalidade religiosa antiga, os dominadores só agem por concessão divina e de modo nenhum são superiores por causa disso. Pelo contrário, são usados por Deus para um propósito maior e recebem um legado ao qual devem ser fiéis, sob a pena de perder o domínio (Daniel 4:26-33; 5:22, 23).
Na mentalidade antiga, cada deus tinha seu próprio território ou jurisdição, restringindo-se a uma determinada terra. Naamã, por exemplo, pede a Eliseu para levar um pouco da terra de Israel a fim de adorar a Deus em seu país (2 Reis 5:17). Em sua compreensão, ele precisava literalmente da terra (solo) de Israel para adorar o Deus de Israel.
Em Daniel, a atividade do Senhor (Yahweh) como “Deus dos céus” não se restringia a um território ou povo. Deus vai para o exílio com Israel, e os exilados podiam manter sua fé, apesar de terem perdido sua relação umbilical com a terra da promessa. Podiam conservar sua fé ainda que longe de Jerusalém e sobreviver cultural e religiosamente, mesmo sem um território – algo revolucionário para a época.
“Terra de Sinar”
Não é acidental a referência, em Daniel 1:2, à “terra de Sinar” para se referir a Babilônia. Há uma clara intenção por trás disso. A expressão reminiscente do Gênesis reflete o espírito de oposição a Deus, desde a formação das primeiras civilizações. Foi na “terra de Sinar” (Gênesis 10:10) que o ímpio Ninrode fundou cidades babilônicas, incluindo Bavel (Babilônia). Após o dilúvio, um grupo partiu para o Oriente e se deparou com uma “planície na terra de Sinar” e se propôs estabelecer ali uma sociedade rebelde (Gênesis 11). Abraão lutou contra “Anrafel, rei de Sinar” (Gênesis 14:9; outras menções negativas são encontradas em Isaías 11:11 e em Zacarias 5:11).
Abraão havia sido chamado a sair de “Ur dos caldeus”, uma cidade babilônica (Gênesis 11:28, 31; 15:7), para formar uma nação fiel, que refletisse o conhecimento de Deus na Terra Prometida. Porém, Nabucodonosor, um rei babilônico arrasou a nação e levou o povo de volta à terra dos caldeus. Foi uma reversão do caminho feito por Abraão.
No Apocalipse, Babilônia (14:8; 16:19; 18:2, 10, 21) se espelha em oposição à Nova Jerusalém (3:12; 21:2, 10). Portanto, ao longo da história bíblica, notamos que o povo de Deus tem sido repetidamente chamado a sair de Babilônia, a começar por Abraão (Gênesis 12:1), passando pelos judeus exilados (Jeremias 51:45), e, simbolicamente, com o chamado aos dispersos na Babilônia espiritual, no tempo do fim (Apocalipse 18:4).
A identidade e o futuro da nação escolhida pareciam pender sobre o abismo na Babilônia de Nabucodonosor. O colapso institucional judaico (do governo e do templo) ameaçavam a fé milenar no Deus de Abraão. Graves questões afligiam o povo. Afinal, ele se contaminaria ao viver na rebelde “terra de Sinar”? A fé no verdadeiro Deus estaria prestes a desaparecer? Se os ofícios real e sacerdotal haviam desmoronado, o ministério profético permaneceu em pé e assumiu um papel crucial nesse momento.
A visão sobre a sequência de impérios de Daniel 2 diz respeito, em última instância, ao povo de Deus. Também revela a natureza ativa da soberania divina, que confia, limita e julga o poder entregue aos impérios humanos. O Senhor levanta e faz cair os mais poderosos líderes e impérios, conforme a fidelidade destes a Sua vontade, a qual tem em vista a salvação do mundo. Assim, a profecia sobre os impérios nos revela a soberania divina, consolando-nos em nosso exílio hoje e nos permite sonhar com um novo amanhã.