Reportagem especial: "Missão sobre duas rodas"
A figura do motociclista vestindo acessórios como jaqueta de couro, luva e bandana, popularizada nos filmes norte-americanos, passou a ser um elemento comum também na cultura brasileira. Nos últimos anos, o número de “tribos urbanas” que reúnem esses...
A figura do motociclista vestindo acessórios como jaqueta de couro, luva e bandana, popularizada nos filmes norte-americanos, passou a ser um elemento comum também na cultura brasileira. Nos últimos anos, o número de “tribos urbanas” que reúnem esses apaixonados por duas rodas, cresceu expressivamente no País. Segundo levantamento da Liga Nacional de Motoclubes, vinculada à Associação Brasileira de Motociclistas (Abram), existem cerca de 5 mil motoclubes (com estatuto e sede própria) e motogrupos (iniciativas em funcionamento, mas que ainda não possuem a mesma formalização) no território nacional.Fenômeno que fica ainda mais evidente em encontros como o que aconteceu em Brasília entre 24 e 28 de julho de 2014. Considerado a maior concentração do gênero na América Latina, o “Brasília Motocapital” é realizado pelo décimo ano e já atraiu motociclistas de países como Argentina, Chile, Uruguai, França, Portugal, Canadá, Estados Unidos e Japão.
Foi pensando especialmente nesse público que nasceu o Adventist Motorcycle Ministry (AMM), um projeto que começou na Flórida, Estados Unidos, em 2008. O que era para ser apenas um clube, inicialmente, consolidou-se como um ministério internacional, chegando, inclusive, ao Brasil. O AMM já está presente em 10 países e seu trabalho é reconhecido pela sede mundial da Igreja Adventista.
Conforme publicado na página oficial do AMM na internet, o ministério busca “apoiar as igrejas e chegar a milhares de ciclistas e famílias em todo o mundo que de outra forma nunca saberiam sobre a mensagem da salvação”.Com esse objetivo, segundo explica Juan Santos, presidente mundial do motoclube, eles procuram fazer de cada viagem uma missão.
Quebra de tabus – Esse trabalho vem contribuindo, inclusive, para desconstruir tabus ligados à figura do motociclista estradeiro, conforme explica o presidente mundial desse ministério. “Quando as pessoas se deparam com os ‘bikers’, os veem como os filmes ensinam, como gente perigosa. Mas ao conhecerem nossa mensagem de esperança e salvação percebem algo mais que um grupo com jaqueta de couro e motocicletas barulhentas. Passam a ver Jesus, seu amor e sua misericórdia”, conta.
Hobby evangelístico - Apaixonado por motocicleta desde os 14 anos de idade, quando teve sua primeira moto, o empresário Leomar Gehrke, de São José dos Pinhais, município da região metropolitana de Curitiba, viu no AMM uma forma de conciliar um hobby com a missão de evangelizar. Há um ano e meio, ele trouxe o projeto para o Brasil. Só na região de Curitiba são aproximadamente 40 integrantes do ministério dos motociclistas adventistas. Ao longo desse período, o AMM Brasil passou a contar com núcleos regionais nos Estados do Paraná, São Paulo, Bahia, bem como em Brasília (DF).
Os encontros acontecem geralmente aos finais de semana, quando costumam sair para ações diversas, que vão desde a realização de programações em igrejas e distribuição de literatura adventista, até projetos sociais.
Heróis do asfalto – Um exemplo do trabalho que realizam foi o ato de solidariedade manifestado em prol de um menino de apenas quatro anos. Ryan é de uma família carente da cidade de Piraquara (PR) e tinha o sonho de ganhar um carrinho de controle remoto. Como o menino insistia com o pedido, apesar da impossibilidade financeira dos pais, uma tia do garoto decidiu colocar cartinhas em várias caixas de correio, na esperança de que o “Papai Noel” providenciasse o tão almejado presente. Uma delas caiu na casa do motociclista Edmilton Passinato. Ao ser apresentado ao grupo o pedido, a decisão foi unânime: proporcionariam à família um Natal diferente. Além do carrinho solicitado por Ryan, foram doados também outros brinquedos para os irmãos da criança, além de alimentos e roupas para toda a família. Assim, nasceu ali uma nova amizade.
A família de seu Hector Cevallos, de São José dos Pinhais (PR), também foi alvo de uma surpresa preparada pelos motocilistas, que entraram em ação com o intuito de melhorar as condições de moradia da família. Para efetivar o plano, eles precisaram ter um bom motivo para tirá-los de casa. A ideia, então, foi oferecer à família uma viagem de quatro dias de passeio, aproveitando a ausência deles para colocar as mãos na massa. No retorno, tudo estava pronto: uma casa de 70 metros quadrados, com direito à banheira e lareira. Fato que levou seu Hector e a esposa, dona Margarida, a se tornarem admiradores do motoclube. “Eu acho esse trabalho com as motos muito original. Até o ronco é missionário”, afirma Margarida. “Eles estão utilizando com muita eficiência esse meio de locomoção. Quando eles se deslocam é uma comunidade de 20, 30, às vezes até 40 pessoas, e isso chama a atenção”, completa Hector.
Parada missionária – Esse ministério também já transformou a vida de uma comunidade da Bahia. Em Porto Seguro, cidade localizada a cerca de 600 km de Salvador, uma igreja desativada há três anos ganhou vida novamente depois que integrantes do AMM decidiram fazer uma reforma na construção e reabrir as portas. Foram três meses de trabalho voluntário aos domingos para que o ambiente ficasse pronto. Às margens da BR 364, no km 46, a placa com a inscrição Adventist Motorcycle Ministry chama a atenção de quem trafega pelo local, muitos deles a caminho da chamada “Costa do Descobrimento”, um importante ponto turístico e histórico do Nordeste brasileiro, situado a 16 km dali.
O templo foi reaberto com o intuito de ser um ponto de apoio físico e espiritual para turistas em geral e estradeiros, já que esta é uma rota turística, por onde passam muitos motoclubes. Ali, os visitantes encontram sombra, água fresca, chuveiro e uma boa recepção. A capela fica aberta durante boa parte do dia e as visitas acontecem quase que diariamente. Além de ser um local de oração, os turistas também recebem literatura cristã.
Foi na inauguração da “Capela AMM”, em 26 de abril de 2014, que Gilson Ferreira da Silva decidiu demonstrar publicamente sua decisão de retornar para a Igreja. Embora seja natural de São Paulo, seus pais se mudaram para a Bahia quando ele tinha apenas cinco anos de idade. Seu novo endereço era a cidade de Eunápolis, município vizinho de Porto Seguro. Ele conta que lá viu pela primeira vez uma moto de grande porte.
Aos 17 anos foi presenteado pelo pai com uma motocicleta. “Chegaram a aconselhar meu pai que aquele não era um bom presente para se dar a um filho. E tinham razão. Logo conheci pessoas diferentes e de costumes diferentes. O resultado foi que me afastei da igreja”, relata Gilson. Ele só voltaria 30 anos mais tarde a ocupar os bancos da igreja. Ao retornar, no entanto, sua preocupação era como viver uma fé ativa, já que não se encaixava nos ministérios tradicionalmente divulgados. “Sou muito tímido, não sei cantar e morro de vergonha ao falar em público. E isso só dificultava ainda mais as coisas para mim”, confessa.
Foi nesse contexto que o AMM apareceu na vida do comerciante, tirando-o do sedentarismo espiritual ao mostrar que sua paixão poderia se transformar sim em uma forma de cumprir a missão. “Como sempre gostei de moto, um dia eu estava navegando na internet à procura de um grupo de motociclistas cristãos para eu frequentar. Precisava de algo pra me agarrar e continuar a minha luta. Mão queria esfriar e sair da igreja novamente. Então, através do Facebook conheci o AMM”, conta. Dessa forma, o mesmo veículo que o influenciou para o mau caminho acabou sendo um importante meio para o fortalecimento da fé e envolvimento na igreja. Gilson exerce atualmente a função de diretor do AMM em São Paulo.
Falando a mesma língua – Além de trabalhar para manter os fieis engajados em atividades missionárias, bem como resgatar quem um dia já foi adventista, essa iniciativa vem buscando, sobretudo, exercer seu papel evangelístico entre as diversas “tribos” de motociclistas. E os eventos voltados para esse público são uma grande oportunidade para isso.
Participar de um encontro motociclístico internacional foi uma das primeiras atividades do AMM em Maringá, recém-organizado na cidade. O destino foi a cidade argentina de Puerto Iguazu, que recebeu 7 mil motociclistas no “Cataratas Moto Fest”, realizado em maio.
“Ficamos maravilhados em ver como as pessoas identificam a Igreja Adventista pelo símbolo que existe em nosso colete. Várias pessoas nos abordaram perguntando sobre a igreja e a escola adventista. A ADRA Argentina, inclusive, estava trabalhando neste encontro também, organizando o trânsito e atendendo nas áreas de saúde e emergência”, relata o presidente do AMM na região de Maringá (PR), o cantor Ivonil Machado.
“O AMM tem uma abertura muito grande nesses encontros porque estamos de motocicleta, vestidos como eles e participando com eles. Com isso, a receptividade para ouvir a Palavra de Deus acaba sendo muito boa. Então, aproveitamos para entregar livros e panfletos, conversamos sobre o nosso ministério, contamos sobre os nossos passeios e atividades, e eles gostam muito de ouvir sobre isso”, acrescenta o presidente do AMM Brasil, Leomar Gehrke.
Na compreensão de Gehrke, realizar essa tarefa é uma enorme responsabilidade, mas, ao mesmo tempo, um privilégio. “Se pregar o evangelho já é algo prazeroso, imagina fazendo isso em cima de uma moto”, frisa. Um sentimento que reforça o slogan que norteia as ações do grupo, de que é possível “fazer o que é preciso, do jeito que eu gosto”. [Márcio Tonetti, USB]
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