Problemas bíblicos com a teologia popular do domínio
A Bíblia fala de uma teologia do domínio, mas que difere de maneira consistente do que tem sido ensinado popularmente.
A versão bíblica da teologia do domínio, assim como a teologia popular do domínio, possuem sua origem nos textos de Gênesis 1:26-28. Mas a leitura bíblica contextual desse texto fundamental de Gênesis difere da leitura da teologia popular. No contexto da criação original, a fala de Deus “dominem eles … sobre toda a terra” (versículo 26)[1] refere-se à incumbência de cuidar do planeta, uma delegação que incluía a natureza (o meio ambiente e os animais).
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Os conceitos de “domínio” (radah e kavash) presentes nestes textos podem ter conotações negativas em nossos dias (de dominação pela força ou política, como na teologia popular do domínio). Mas o termo aparece em alguns textos bíblicos, no contexto do capítulo 1 de Gênesis, associados a uma perspectiva completamente positiva. Em Gênesis 1, o ser humano recebeu a incumbência de cuidar/administrar a terra, preservando-a no bom estado em que foi criada.
Domínio com limites
Somente uma administração benevolente em harmonia com o caráter benigno do Criador poderia ser exercida. Qualquer outro tipo de domínio (insensível, abusivo, opressivo ou ditatorial) não seria uma fiel execução da delegação real recebida de Deus. Além disso, ainda que positivo, o domínio dado ao ser humano originalmente tinha limites. Por exemplo, a impossibilidade de exercer domínio sobre outros seres humanos. Essa limitação foi reafirmada no Novo Testamento por Jesus, que ensinou aos Seus discípulos a não exercerem domínio uns sobre os outros, mas a servirem uns aos outros (Mateus 20:25-26).
Na sequência, em Gênesis 3, lemos o triste relato da rebelião humana contra o Criador. Neste episódio, os seres humanos, que haviam sido criados para reinar sobre a terra sob a soberania de Deus (o Rei do universo), infelizmente deram ouvidos à serpente (instrumento utilizado pelo inimigo de Deus e da humanidade conforme Apocalipse 12:9 e 20:2). Na mentalidade bíblica, quando a humanidade ouviu um inferior, um animal/uma besta (a serpente) ao invés do Criador, isso representou não apenas a queda moral da humanidade, mas também a inversão da ordem natural da criação. É que os humanos, criados para reinar sobre os animais, estavam surpreendentemente sendo guiados por uma besta.
Desde então, o planeta vive parcialmente sob o domínio/administração do mal. Isso está sugerido pela árvore do “conhecimento do bem e do mal” (Gênesis 2:9, 17). Tal dinâmica é reafirmada no Novo Testamento no diálogo entre Jesus e o diabo onde o último sugere que poderia dar a “autoridade” (exousia = domínio)[2] deste mundo a quem quisesse, pois ela lhe havia sido entregue (Lucas 4:6), em uma clara alusão à rebelião humana descrita em Gênesis 3:6.
Mudança de domínio
O restante da narrativa bíblica mostra as graves consequências desta mudança de domínio. Ao mesmo tempo, descreve a esperança bíblica na restauração do domínio, quando o reino de Deus voltará a ser pleno sobre a terra. Essas descrições são elaboradas especialmente nos textos de Daniel 7 e Apocalipse 13-14. Essas passagens descrevem os reinos deste mundo como governados por bestas ferozes—uma representação simbólica de um mundo caído, onde os animais estão no controle. A solução para esse mundo, de acordo com esses textos, é a conclusão do juízo celestial sobre essas bestas.
O juízo retirará o domínio das bestas sobre o mundo (Daniel 7:12, 26) e o devolverá à humanidade (Daniel 7:18, 22, 27) na pessoa do seu Rei legítimo, o Filho do Homem (Daniel 7:13-14), isto é, Jesus Cristo (Mateus 16:13). Assim que o juízo celestial (Apocalipse 14:7) for concluído, Jesus voltará para buscar o Seu povo (Apocalipse 14:14-16). Em seguida, quando a terra for restaurada, os seres humanos voltarão a reinar sobre ela (Apocalipse 22:5; conforme 5:10) como deveriam ter feito no princípio, de maneira benevolente, não sujeitos às bestas, mas em fidelidade ao Criador.[3]
Teologia bíblica x teologia popular
A teologia bíblica do domínio, portanto, não permite imaginar que seres humanos exerçam pleno domínio sobre a terra hoje. Somos seres caídos em um mundo caído e convivemos com poderosas forças espirituais malévolas (Efésios 6:11-12) que atuam por meio das bestas apocalípticas (Apocalipse 13:2).
Certamente os filhos de Deus podem exercer uma influência positiva sobre a terra. É o caso das expressões “sal” e “luz” (Mateus 5:13-16). Mas seres humanos não conseguem domar ou subverter essas bestas. Pelo contrário, o relato bíblico é explicito em descrever o povo de Deus sendo perseguido por estas bestas (Daniel 7:21, 25; Apocalipse 12:13, 17; 13:7, 10, 15). Somente Deus pode vencer as bestas deste mundo. O processo de livramento requer a intervenção divina. A plena restauração do domínio para a humanidade ocorrerá somente no mundo porvir, depois que o mal for destruído (Apocalipse 20). Naquele ambiente perfeito e livre de perigos, novamente os filhos de Deus poderão reinar em segurança sobre a terra (Apocalipse 21-22).
Flavio Prestes Neto é doutor tem Teologia Bíblica.
Referências:
[1] Tradução literal do hebraico, a qual requer o uso do plural “dominem eles”.
[2] Ver o uso de exousia no texto grego de Daniel 7:12, 14, 26, 27.
[3] Flavio Prestes III, “Dominion Shifts in Biblical Apocalyptic Literature: A Narrative Reading of Daniel 7 and Revelation 12–14 vis-à-vis Genesis 1–3” (ThD diss., Andrews University, 2023).