Brasília, DF... [ASN] Embora o tenha feito com certa cautela e incerteza, no âmbito religioso, a Igreja Adventista sempre foi pioneira no uso dos meios de comunicação como ferramentas potencializadoras de sua mensagem. No entanto, até o início da década de 1990, ela e seus membros não viam a televisão e outros meios audiovisuais com bons olhos. Foi apenas após esse período que a opinião - e a percepção de como poderia ser mais bem aproveitada - começou a mudar.

Essa constatação não é fruto de achismos. Em sua tese de doutorado, defendida no início deste ano na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), mas que também envolveu pesquisas nas universidades Andrews e Notre Dame, nos Estados Unidos, o pastor e jornalista Allan Novaes analisou publicações adventistas em língua inglesa que apresentaram a visão da Igreja sobre a TV e como ela foi alterada ao longo dos anos, levando em consideração pressupostos teológicos, sociais e comunicacionais.

Porém, a convivência e interesse pelo tema mídia e religião já faz parte da rotina de Novaes há mais de 10 anos, que leciona para os cursos de Jornalismo, Comunicação Social e Teologia do Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp), campus Engenheiro Coelho. Entenda mais sobre sua pesquisa na entrevista abaixo.

O título de sua tese de doutorado começa com a frase “O problema adventismo-televisão”. A que problema você se refere?

Esse conceito vem da obra Cristo e cultura, de H. Richard Niebuhr, publicada em 1951. No livro, o autor apresenta o “problema Cristo-cultura” que, como ele mesmo define, é um debate milenar, multiforme, confuso e polêmico sobre as relações entre a religião cristã e a civilização ocidental no decorrer da história. Niebuhr investigou como os cristãos têm se relacionado com a cultura em diferentes épocas.

Há algumas décadas, a mídia tem sido encarada pela comunidade acadêmica como uma dimensão influente da cultura, de forma que estudar a mídia é, de certa forma, compreender a sociedade. Levando em conta essa realidade, resgatando a história conflituosa e pioneira da Igreja Adventista do Sétimo Dia com os media, e entendendo que o adventismo vive atualmente um momento de utilização vasta da mídia – ao mesmo tempo em que a denominação tem procurado estabelecer uma maneira segura e teologicamente orientada de se relacionar com ela –, percebi que o “problema adventismo-mídia” é uma das grandes questões a ser debatida hoje na agenda teológica adventista.

Como o assunto “mídia” é muito amplo, propus um recorte na minha tese: a televisão. Com ela, eu poderia excluir a mídia impressa e focar nas mídias audiovisuais, que são objeto histórico de desentendimento e incompreensão. Apesar de a TV ser uma mídia considerada em declínio entre as novas gerações, seu conteúdo – reality shows, filmes, séries, etc – continuam sendo objetos de desejo e consumo dos jovens. Por isso, entender a relação do adventismo com a cultura audiovisual através da mídia televisiva gera recursos para analisar o cinema, a internet e qualquer outra tecnologia que tenha como base a imagem.

Nos últimos anos, com a profissionalização da comunicação adventista (inclusive com a implementação de uma TV própria), que tipos de questionamentos teológicos também vieram à tona?

Acompanhei o boom da Igreja Adventista do Sétimo Dia no Brasil através do fenômeno da TV Novo Tempo nos anos 2000 e boa parte da profissionalização da comunicação da Igreja com a criação de núcleos de mídia e de assessorias em várias sedes administrativas no País. Ao mesmo tempo que essa revolução comunicacional ocorria, questões de caráter teológico surgiam com força: Qual deve ser o papel litúrgico e homilético das novas tecnologias da comunicação? Como discipular uma igreja cada vez mais dependente da linguagem midiática? Quais diretrizes e orientações devem ser dadas a membros, líderes e pastores sobre o uso de tecnologias e mídias sociais? Dessa forma, percebi que um olhar mais atento para a história da relação do adventismo com a mídia seria extremamente esclarecedor diante dos desafios que a comunicação impõe hoje à Igreja e à sociedade. E minha pesquisa seguiu nessa direção.

A que conclusões você chegou?

Em primeiro lugar, verifiquei que todo grupo cristão tem uma relação conflituosa e conturbada com a mídia. Inicialmente, há certa demonização de determinado veículo de comunicação ou cautela e descrença em relação a ele, até que um ministro ou membro de perfil “evangelista” ou “missionário” faça algum experimento com aquela tecnologia. Nesse processo, líderes da denominação observam a iniciativa e avaliam acertos, erros, limites e excessos. Quando a iniciativa amadurece, ela é institucionalizada. Esse foi também o padrão do pioneirismo adventista em mídias como o rádio, TV e internet. A resistência adventista se deu principalmente às mídias audiovisuais, como cinema, televisão, entre outros.

Minha pesquisa associou essa resistência às marcas identitárias do milerismo e do adventismo, características que definem a maneira como nos compreendemos e como nos relacionamos com a sociedade e a cultura de nosso tempo, entre elas, a orientação textocentrada e a ênfase experiencial cognitiva-racional. Esses traços sócio teológicos direcionaram nossa relação com a mídia, ao enfatizarmos durante muito tempo a supremacia do texto sobre a imagem, o que gerou, por exemplo, a desconfiança que se tem até hoje da leitura da Bíblia em outras plataformas que não o papel. Além disso, a ênfase racional da experiência religiosa promovida pelo milerismo e mantida no início do adventismo levou-nos a enfatizar em excesso o aspecto cognitivo da natureza humana. Ao se acreditar na razão como o centro de comando da vida espiritual, eclipsando a importância de outras dimensões da vida religiosa, a mídia se tornou um dos maiores inimigos do estilo de vida adventista.

Por que isso aconteceu?

O motivo consistia no poder de manipulação mental que, se supunha, os media possuíam. O impacto disso na relação adventismo-mídia foi o de compreender o ser humano como um refém e vítima da tecnologia, sendo incapaz de se “defender” das mensagens e da influência midiática. A ênfase no discurso de “manipulação mental”, comum à opinião pública dos anos 1950 aos 1970 nos Estados Unidos, repercutiu na mentalidade da Igreja. Palavras como “hipnose”, “lavagem cerebral”, e outras equivalentes, frequentemente eram usadas na literatura adventista que analisei para afirmar que mensagens presentes em produtos midiáticos têm o poder de impelir a vontade, moldar comportamentos, formar hábitos e manipular a mente, sem que se haja consciência disso.

Obviamente, há uma contradição explícita entre a repetida ênfase nos poderes de manipulação e lavagem cerebral da mídia audiovisual e a compreensão antropológica adventista, que reserva à vontade o único componente da natureza humana no qual Satanás não tem poder sobre. A noção de indivíduo como um ser indefeso, inerte e passivo diante das mensagens midiáticas, além de não corresponder ao atual estado da arte da pesquisa em comunicação, também não representa adequadamente a compreensão da natureza humana da Igreja. Algo que, na literatura adventista que analisei, iria ficar claro somente a partir dos anos 1990.

Que desafios você acredita que a Igreja Adventista pode enfrentar futuramente (ou já enfrenta) com a internet e o universo construído em torno dela?

Um dos grandes desafios que a Igreja Adventista possui – a mesma que todos os grupos religiosos enfrentam diante de novas tecnologias da comunicação – é a perda do “monopólio” da produção e difusão do saber teológico. A internet democratizou de forma considerável o acesso à informação e transformou usuários em produtores de conteúdo. Por um lado, o conhecimento não está mais sob o controle total de grandes organizações, mas por outro o discurso e o papel do especialista se enfraqueceram. Nesse cenário, a Igreja assiste a um crescimento expressivo de membros, líderes e pastores que utilizam a mídia para propagar discursos teológicos, normativos e comportamentais sem ter, muitas vezes, o preparo e o repertório necessários.

O caso aqui, obviamente, não é o de suprimir ou enfraquecer essa atividade midiática. Mas sim fornecer condições institucionais (intelectuais e materiais) para que esses formadores de opinião consigam cooperar mais eficazmente com as estratégias da denominação. Eles também podem ajudar bastante a liderança da Igreja fornecendo a ela uma leitura mais acurada da realidade denominacional a partir das demandas e opiniões dos próprios membros, algo que muitas vezes as iniciativas institucionais não conseguem identificar tão eficazmente.

Existe algum projeto ou grupo de pesquisa em que se pretende dar continuidade (ou novos desdobramentos) a partir de sua tese?

No início deste ano criei o Excelsior!, grupo de pesquisa em religião e cultura da mídia. É um grupo interdisciplinar, registrado no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e alocado na Faculdade de Teologia e no curso de Comunicação Social do Unasp. Atualmente, temos mais de 20 membros, entre professores, pesquisadores e alunos envolvidos. A ideia é explorar as relações entre o adventismo e a mídia, com foco nas motivações e nos pressupostos teológicos, sociológicos e comunicacionais por trás delas. Além disso, trabalharemos também com consultoria para a criação e elaboração de produtos e projetos que envolvam a utilização de tecnologias e plataformas do universo midiático pela Igreja, como games, histórias em quadrinhos e outros materiais pensados para as novas gerações.

Como a Igreja pode utilizar o estudo produzido por você para repensar ou legitimar sua compreensão sobre o assunto?

Em uma época na qual a mídia está mais presente e influente no cotidiano e na qual a malha comunicacional da Igreja (emissoras de rádio e TV, redes sociais, apps, youtubers e vlogers, etc) cresce rapidamente, revisitar a história da relação do adventismo com a mídia é essencial para se compreender o estado atual da comunicação adventista. Além disso, a compreensão da influência de nossas marcas identitárias sobre o uso que os adventistas fizeram (e fazem) da mídia é fundamental para se estabelecer no presente e no futuro ações e estratégias que respeitem nosso legado doutrinário e, ao mesmo tempo, não ignorem as demandas e mudanças da sociedade contemporânea. [Equipe ASN, Jefferson Paradello]