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O que aprendemos sobre os reis de Babilônia e de Tiro na Bíblia?

Descrição dos dois monarcas revelam lições sobre o orgulho e a soberba de quem se posiciona como adversário de Deus


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Interpretação de textos bíblicos sobre monarcas do passado pode trazer valiosas lições para a vida cristã hoje (Foto: Shutterstock)

Você já leu um texto que apresentava um sentido literal, mas que, ao mesmo tempo, parecia expor um significado a mais? Imagine a descrição de uma personagem histórica que tem atitudes e comportamentos extremamente parecidos com os de uma outra figura bem conhecida.

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À medida que você lê o relato dessa tal personagem, que fala de uma certa forma, age de um jeito bem peculiar e tem expressões e sentimentos quase iguais aos de uma pessoa que você sabe muito bem quem é, sua leitura adquire uma profundidade maior. Muito provavelmente, você leria esse relato não apenas como um registro histórico do passado, mas estabeleceria conexões com o presente ou até com o futuro.

Reis de Babilônia e de Tiro

Se alguma vez os textos de Isaías 14:12-15 e Ezequiel 28:12-19 chamaram a sua atenção para as figuras ali descritas, isso é perfeitamente normal. As duas porções estão entre as mais debatidas dos dois livros proféticos do Antigo Testamento. A principal razão é que, para alguns estudiosos, ali realmente há uma descrição histórica de duas personagens curiosas: o rei de Babilônia e o rei de Tiro. Outros, no entanto, consideram que estamos diante de uma descrição cuidadosa da rebelião de Satanás no céu, quando ainda era um anjo de extrema confiança de Deus.

O assunto é extenso, mas vou tentar resumir as principais ideias de ambos com algumas fontes. Vamos começar com o texto de Isaías 14:12-15. Na tradução da Nova Almeida Atualizada, o trecho é o seguinte:

¹² Veja como você caiu do céu, ó estrela da manhã, filho da alva! Veja como você foi lançado por terra, você que debilitava as nações! ¹³ Você pensava assim: "Subirei ao céu, exaltarei o meu trono acima das estrelas e me assentarei no monte da congregação, nas extremidades do Norte. ¹⁴ Subirei acima das mais altas nuvens e serei semelhante ao Altíssimo." ¹⁵Mas você descerá ao mundo dos mortos, no mais profundo do abismo. 

Interpretações históricas em Isaías 14

É evidente que o contexto do capítulo 14 tem a ver com um hino triunfal acerca da queda de Babilônia, uma nação que dominou o reino antigo de Judá e submeteu o povo hebreu ao exílio traumático do sexto século antes de Cristo. A primeira parte da profecia é contida no capítulo 13, feita provavelmente entre os anos 716 e 715 a.C. pelo profeta. Há, nos dois capítulos, menções diretas a orgulho, blasfêmia e autoexaltação de Babilônia, inclusive prefigurada no rei.

No século XVI, o teólogo João Calvino foi taxativo em seu comentário do livro de Isaías. Para o reformador, o que temos é uma referência à queda de Babilônia a partir da descrição do seu rei. Ele afirma categoricamente que “a exposição desta passagem, que alguns deram, como se se referisse a Satanás, surgiu da ignorância; pois o contexto mostra claramente que estas declarações devem ser entendidas em referência ao rei dos babilônios”.[1]

Vailatti, em um artigo sobre o assunto, tenta especular a identidade do rei. Ele escreve que “porém, algumas sugestões têm sido apresentadas na tentativa de descobrir quem foi esse rei. Entre elas, mencionamos as seguintes: Nabucodonosor, Nabonido, Merodaque-Baladã, Tiglate-Pileser III, Sargão II, uma representação simbólica de cada tirano do passado, em vez de um rei específico, Satanás, o rei de Tiro e Satanás simultaneamente”.[2]

Por sua vez, Brevar Childs[3] considera que o cenário do trecho de Isaías 14:12-15 deveria ser mais bem compreendido a partir de relatos mitológicos da região dominada pelos impérios da Assíria e Babilônia. Assim, ele corrobora com a ideia de as duas potências estarem alinhadas e atuarem de forma arrogante diante de Deus. Ou seja, para esse autor, o que se tinha ali era um desafio das nações contra Deus e não um conceito de identificação de um adversário espiritual como Satanás.

O que se vê em Ezequiel 28

Já em Ezequiel 28:12-19, o rei de Tiro é, também, apresentado como objeto de uma profecia. Em dado momento, a lamentação descrita apresenta traços familiares à narrativa do capítulo 14 de Isaías. O texto integral pode e deve ser lido, mas vamos falar neste artigo apenas de alguns trechos.

Para os que observam apenas o relato histórico, a porção analisada expõe a menção ao querubim da guarda ungido. Em seu comentário sobre o livro de Ezequiel, John Taylor[4] trata desta identificação do rei de Tiro como um querubim sem se posicionar sobre a identidade deste ser. Ele reconhece que o texto faz alusões aos capítulos 2 e 3 de Gênesis e ao relato do paraíso, porém conclui que "não é clara a figura que Ezequiel tinha em mente”.

Na interpretação de Vailatti, a menção ao Éden pode ser considerada uma referência, com Harã e Calné, a três cidades da Síria com as quais Tiro negociava mercadorias. Sua análise é a de que “como o pecado do rei de Tiro envolve relacionamentos comerciais, então essa hipótese se adequa bem ao contexto mais amplo de Ezequiel 28”.[5]

Figura de Lúcifer

Por outro lado, é cabível interpretar os textos de Isaías e de Ezequiel como alusões contundentes ao adversário maior de Deus, identificado tanto em textos judaicos antigos, nos escritos dos chamados pais da igreja (Tertuliano, Justino Mártir e Orígenes) como na própria Bíblia Sagrada. A ideia da referência ao papel e origem de Satanás, ou Lúcifer, como é mencionado no texto em latim da versão da Bíblia chamada Vulgata (produzida por Jerônimo entre o final do século IV e V depois de Cristo), possui uma consistente argumentação.

Ao falar especificamente de Isaías 14, a autora Kéldie Paroschi destaca elementos ou referências a expressões indicando que o contexto não trata apenas do mundo que conhecemos. Para ela, “a atenção se desloca entre estes três níveis, e o julgamento de Deus contra o rei da Babilônia afeta o céu, de onde ele é expulso; a terra, que encontra o descanso prometido; e o sheol, excitado com a vinda do rei, desenvolvendo ainda mais o alcance universal de Isaías 14.[6]

O contexto, portanto, fica favorável para que se permita pensar não apenas em um relato de um líder político antigo. A probabilidade aumenta para uma reflexão sobre algum ser diferente. O Comentário Bíblico Adventista, abordando o capítulo 28 de Ezequiel, vai nessa linha e ressalta que há expressões difíceis de serem conciliadas com um literal rei de Tiro. É dito acerca dessa figura, que estava no Éden, que era um querubim da guarda ungido, era perfeito nos seus caminhos e que foi lançado fora do monte de Deus.

Tais características, tanto em Isaías quanto em Ezequiel, fazem eco ao que Jesus e o apóstolo João falaram sobre Satanás. Em Lucas 10:18, por exemplo, Cristo menciona o regresso dos 70 missionários e lembra que via Satanás caindo do céu como um relâmpago. João comunica a mesma ideia em Apocalipse 12:9, em que mais claramente diz que o diabo ou Satanás foi atirado para a terra e, com ele, os seus anjos.

José Bertoluci, em sua tese de doutorado de 1985 sobre as expressões 'estrela da manhã' e 'querubim da guarda ungido', presentes em Isaías e Ezequiel no contexto do conflito entre o bem e o mal, chega a conclusões importantes. Ele afirma que a linguagem usada para descrever o rei de Babilônia e o rei de Tiro é semelhante à usada para descrever ou retratar Satanás. E isso em duas dimensões principais. A primeira delas porque Satanás atribui a si mesmo características de Deus; e, também, porque seu orgulho marca o início do pecado.[7]

Lições práticas

Em uma leitura atenta e honesta dos dois trechos citados aqui, pelo menos três lições ou aplicações à vida cristã podem ser extraídas:

1.O poder pertence a Deus. O ser humano, assim como o anjo rebelde citado em Isaías 14, desejava subir ao céu não para conhecer mais a vontade de Deus; ele desejava exaltar o seu trono acima do Altíssimo, tentando ser semelhante em poder. O poder verdadeiro procede de Deus e o que nós podemos fazer aqui só pode ser realizado com a permissão divina.

2.O orgulho engana e distorce a percepção sobre Deus. Em Ezequiel 28, é dito que o rei de Tiro/Satanás eleva seu coração e se corrompe, em última instância, por se imaginar melhor e maior do que Deus. Tal orgulho e arrogância levam o ser criado a se imaginar superior ao Criador e, portanto, livre da obediência e da submissão. Deus espera sujeição à Sua vontade e não rebeldia inconsequente.

3.O pecado está nesse ser. A autoria do pecado é atribuída, especialmente no relato de Ezequiel, ao rei de Tiro. Ao considerar que o profeta também fazia alusão a Satanás, podemos compreender que o pecado é de autoria do inimigo de Deus. O pecado, como bem explicado em centenas de outros trechos da Bíblia (Levítico, Deuteronômio, Salmos, evangelhos, cartas de Paulo, etc), nasceu a partir da inconformidade com a vontade divina. E, infelizmente, passou a ser uma realidade de todos os seres criados e amados por Deus.

Este artigo não se propõe a ser uma exaustiva explicação sobre todas as variáveis relacionadas aos significados dos dois textos. Mas, para mim, o mais importante é considerar a ideia de que há uma descrição mais detalhada sobre o mal, suas possíveis origens e seus resultados.

Para o estudante sincero da Bíblia Sagrada, o grande aprendizado talvez seja o de que é essencial depender de um Deus que espera obediência por amor e que tem interesse em nos libertar dos efeitos do mal, concretizados no pecado.

Felipe Lemos é jornalista, pós-graduado em Estudos Teológios e editor de notícias no Portal Adventista


Referências:

[1] CALVIN, John. Commentary on the book of prophet Isaiah – volume 1: Grand Rapids, 1999. Disponível em https://www.ccel.org/ccel/calvin/calcom13.html.

[2] VAILATTI, Carlos Augusto. O Rei da Babilônia e o Rei de Tiro: Uma Análise de Isaías 14:12-15 e Ezequiel 28:11-19. [Revista Vértices]. Nº16. São Paulo, FFLCH-USP-DLO, 2014, pp.120 e 121. Disponível em https://www.revistas.usp.br/vertices/article/view/179046.  

[3] CHILDS, Brevard. Isaiah: a commentary. Westminster John Knox Press, 2000, p. 127.

[4] TAYLOR, John. Ezequiel introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1989, p. 177.

[5] VAILATTI, Carlos Augusto. O Rei da Babilônia e o Rei de Tiro: Uma Análise de Isaías 14:12-15 e Ezequiel 28:11-19. [Revista Vértices]. Nº16. São Paulo, FFLCH-USP-DLO, 2014, p.127. Disponível em https://www.revistas.usp.br/vertices/article/view/179046

[6] PAROSCHI, Kéldie. The fall of Lucifer ins Isaiah 14: is the interpretation still valid? Ministry Magazine: 2015, p. 6-8. Disponível em https://www.ministrymagazine.org/archive/2015/09/the-fall-of-lucifer-in-isaiah-14.

[7] BERTOLUCI, José. The Son of the Morning and the Guardian Cherub in the Context of the Controversy Between Good and Evil. 375 f. Tese (Doutorado) - Curso de Teologia, Andrews University, Berrien Springs, 1985. Disponível em https://digitalcommons.andrews.edu/dissertations/17/.