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O jogo do grande conflito

Saiba quando e como a humanidade colocou tudo a perder e qual foi a resposta de Deus


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Aos primeiros habitantes da Terra, foi dada a escolha de seguir a ordem divina ou suas próprias vontades (Foto: Shutterstock)

Um grupo de pessoas está assentado ao redor da mesa. Alguém explica as regras do jogo e distribui as cartas igualmente. Dois participantes inexperientes estão empolgados, mas seu entusiasmo não dura muito. Após algumas jogadas, ambos são enganados pelo blefe do adversário e perdem todas as fichas.

Essa história é uma boa metáfora para o relato de Gênesis 3, que narra a pior jogada da humanidade, representada por um casal ingênuo: Adão e Eva. Eles tiveram a oportunidade de escolher entre obedecer a Deus ou satisfazer a própria vontade. Porém, infelizmente, não tomaram a melhor decisão. Mas o que aconteceu naquela “partida” para que os pais da humanidade fossem enganados pelo adversário? Qual foi o resultado de sua transgressão? E como Deus consertou a situação?

Regras do jogo

O relato da queda do ser humano em Gênesis 3 é antecedido pela ordenança divina no capítulo 2, versos 16 e 17: “O SENHOR Deus lhe deu esta ordem: De toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás.” A narrativa deixa claro que Deus é quem determina as regras do jogo.

Esses dois versos apresentam características típicas de uma aliança. Em 1955, o teólogo norte-americano George Mendenhall publicou o livro Law and Covenant in Israel and the Ancient Near East [Lei e Aliança em Israel e no Antigo Oriente Próximo]. Na obra, ele comparava os antigos tratados políticos dos hititas (séculos 14 e 13 a.C.) com o acordo firmado entre Deus e Israel.

Ao fazê-lo, Mendenhall percebeu que os pactos na Bíblia seguiam a mesma estrutura desses tratados que, em sua maioria, apresentavam um acordo entre um senhor e um servo. Nesses antigos documentos, os senhores estipulavam as leis que os servos deveriam obedecer, além de pronunciar bênçãos e maldições que ocorreriam em resultado da fidelidade ou infidelidade à aliança.

De maneira semelhante, Deus estipulou que o primeiro casal poderia comer o fruto de toda árvore do jardim, menos da árvore do conhecimento do bem e do mal. De fato, Gênesis 2:16 é a primeira vez que o verbo “ordenar” (do hebraico tsawah) é usado na Bíblia, o qual tem a mesma raiz da palavra “mandamento” (mitswah). Isso demonstra que, ao fazer aquela proibição, o Senhor havia promulgado uma lei.

Conforme o rito da aliança, Deus pronunciou uma bênção e uma maldição, que dependeriam da fidelidade do primeiro casal à Sua palavra: se Adão e Eva fossem fiéis, teriam acesso à árvore da vida e viveriam eternamente (Gênesis 3:22); se desobedecessem, seriam banidos do jardim e punidos com a morte (Gênesis 2:17; 3:23).

Blefe do adversário

A narrativa segue, e uma nova personagem é apresentada: a serpente. Essa víbora não era um animal comum. O texto a qualifica por meio do artigo “a” (do hebraico ha), demonstrando que se tratava de uma cobra especial, que era mais “sagaz” que todos os animais que haviam sido criados por Deus.

A Bíblia menciona apenas duas ocasiões em que um animal falou com um ser humano: a serpente no Éden (Gênesis 3) e a jumenta de Balaão (Números 22:28-32). No segundo caso, as Escrituras informam que a jumenta falou por meio da intervenção de um anjo, que se colocou diante do profeta como seu adversário (satan).

Esse paralelo sugere que a serpente também serviu de “boca” para um anjo. Porém, no caso de Gênesis 3, o anjo não se colocou como um adversário; ele era o próprio adversário. O Novo Testamento revela claramente a identidade dele: “Foi expulso o grande dragão, a antiga serpente, que se chama diabo e Satanás, o sedutor de todo o mundo” (Apocalipse 12:9; ver 20:2).

A serpente se aproveitou do fato de que Eva era uma “jogadora” iniciante e a enganou. O contraste entre a sagacidade da serpente e a inocência de Eva é acentuado na narrativa por meio de um jogo de palavras. Gênesis 2:25 menciona que Adão e Eva estavam “nus” (‘arummim), ao passo que a serpente é retratada no versículo seguinte como uma criatura “sagaz” (‘arum).

Apesar de serem duas palavras diferentes, elas possuem a mesma sonoridade. Assim, o leitor é induzido a interpretar a nudez do primeiro casal em contraste com a sagacidade da serpente.

Nesse caso, a nudez é um símbolo da pureza e inocência de Adão e Eva, características que eles perderam logo após o pecado (Gênesis 3:7).

A serpente blefou ao simular ser um agente divino. Gênesis 3:1 indica essa leitura por duas razões: (1) a fala da serpente é introduzida com as palavras “e disse” (wayyo’mer), a mesma expressão utilizada para iniciar as declarações de Deus em todo o relato da criação (ver Gênesis 1:3, 6, 9, 11, 14, 20, 24, 26, 28 e 29); (2) a serpente cita a ordem divina – “É assim que Deus disse: Não comereis de toda a árvore do jardim?” –, mas omite a proibição de comer o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal (Gênesis 2:17).

Eva respondeu à serpente dizendo que Deus havia proibido que ela e seu esposo comessem aquele fruto, sob pena de morte. Então Satanás partiu para sua jogada final e disse: “É certo que não morrereis” (Gênesis 3:4). Ele atribuiu ao fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal a imortalidade oferecida por meio da árvore da vida (v. 22). E, para piorar a situação, o engano pode ter se tornado ainda mais forte, devido ao fato de as duas árvores estarem no centro do jardim (2:9; 3:3).

O texto menciona que Eva contemplou a árvore e viu que “era boa” para se comer (Gn 3:6). A expressão “e viu […] que era bom” é uma clara alusão à atividade criadora de Deus (ver 1:4, 10, 12, 18, etc.). Gênesis 3:6 ainda menciona que Eva comeu o fruto e “deu” (natan) a seu marido para que ele também “comesse” (’akhal). A ideia de “dar” para “comer” é mais uma referência à atividade criadora de Deus, pois, em Gênesis 1:29, é o Senhor quem “dá” (natan) o “mantimento” (’okhlah) para os seres humanos.

Esses paralelos parecem sugerir uma tentativa de Eva assumir indevidamente o lugar de Deus na narrativa. O mais interessante é que, ao tentar se tornar “como Deus” (3:6), Eva adotou a mesma postura da serpente (3:1; ver Isaías 14:12-15).

Em resumo, Gênesis 3 mostra a verdadeira natureza do pecado: levar o ser humano a substituir a palavra de Deus pelo próprio desejo e inverter os papéis da aliança, de modo que o servo assuma as prerrogativas do senhor. Ao agir dessa maneira, o ser humano se torna igual a Satanás (o adversário) e passa a ser seu próprio deus.

Aposta fracassada

Após terem desobedecido ao Senhor e comido do fruto, Adão e Eva foram confrontados com as consequências de sua decisão. Como servos, eles podiam optar por ser fiéis ou não, o que eles não podiam controlar era o resultado de suas escolhas.

O texto relata que, ao ouvirem a voz de Deus, eles perceberam que estavam nus e fizeram cintas de folhas de figueira para si (Gênesis 3:7). Após Adão e Eva terem sido influenciados pela “sagacidade” da serpente, sua “nudez”, que era símbolo de pureza, se tornou motivo de vergonha (comparar com Isaías 20:2, 4).

Além de terem tentado solucionar seu erro com as próprias mãos, fazendo vestes de folhas de figueira, eles se esconderam de Deus. A Bíblia diz que o casal procurou refúgio “entre as árvores do jardim” (3:8). No original hebraico, porém, esse verso diz literalmente que eles se esconderam “no meio da árvore do jardim”.

A expressão “no meio” (betokh) é a mesma utilizada para se referir à localização das árvores da vida e do conhecimento do bem e do mal. Curiosamente, a tradição judaica ensina que Adão e Eva se refugiaram na árvore da tentação (Abravanel, Sobre a Torá, Gênesis 3:8). Se considerarmos o fato de que, na cena seguinte, Deus Se encontra com o casal na presença da serpente (Gênesis 3:12-14), essa afirmação faz todo sentido. Isso quer dizer que, ao pecar, Adão e Eva se afastaram de Deus e se aproximaram moral e geograficamente da serpente.

Na sequência, Adão tentou se justificar atribuindo sua falha à mulher que o Senhor lhe tinha dado (v. 12), e Eva se desculpou transferindo seu erro à serpente (v. 13). Em última instância, eles estavam responsabilizando Deus, o Criador da mulher e da serpente, pelo pecado que haviam cometido. Essa experiência nos revela que, embora seja mais fácil negar nossos erros e culpar os outros, nada está oculto aos olhos de Deus.

Quando Deus Se colocou diante de Adão, Eva e a serpente, o jardim do Éden se transformou num tribunal. Visto que havia sido infiel à aliança, o casal ficou sujeito às maldições que acompanhavam a violação do pacto (v. 16-19; ver Deuteronômio 27:12-24).

Avesso ao mal (Habacuque 1:13), o Senhor pronunciou Seu veredito sobre cada transgressor. Na esfera animal, a serpente foi condenada a rastejar sobre o ventre e a comer pó todos os dias de sua vida; na esfera espiritual, Satanás, que havia falado por intermédio da serpente, foi condenado a viver em inimizade com a mulher e a ser destruído pelo Descendente dela, isto é, Jesus (ver Gênesis 3:15; Salmos 110; Habacuque 2:14; Apocalipse 12:1-9). O texto também menciona que a “descendência” de Satanás estaria em constante conflito com o Descendente da mulher (João 8:44; ver 1João 3:10).

A mulher, por sua vez, foi condenada a sofrer dores na gravidez e a ser governada pelo homem (Gênesis 3:16). No entanto, é importante lembrar que isso não fazia parte do plano original de Deus, pois Ele havia criado ambos, homem e mulher, iguais diante Dele (Gênesis 1:27). Logo, essa passagem não deve ser usada como uma desculpa para oprimir e subjugar a mulher.

Por último, Adão foi condenado a lavrar o solo com dificuldade. Devido ao pecado do homem, a terra se tornaria infértil, por isso Adão teria que trabalhar arduamente para obter dela o seu sustento. Mas o pior de tudo foi a última parte da sentença divina: “Porque tu és pó e ao pó tornarás” (Gênesis 3:19). Deus havia advertido o primeiro casal de que, se comessem o fruto proibido, morreriam (Gênesis 2:17), e a palavra do Senhor não falha.

Jogada de mestre

Quando o “jogo” parecia estar perdido por causa de uma escolha precipitada dos participantes, Deus reverteu a situação. Conforme já observado, a violação da aliança requeria a morte dos transgressores. Ou seja, por terem perdido as fichas, Adão e Eva teriam que ser “eliminados” do jogo.

O Senhor, porém, não permitiu que isso acontecesse. Ele assumiu a dívida dos participantes e deu novas fichas para que eles continuassem jogando. Mas como Deus fez isso? A resposta para essa pergunta está em Gênesis 3:21: o sacrifício substitutivo.

Um animal teve que ser sacrificado para vestir Adão e Eva com peles (comparar com Levítico 7:8). As vestes providenciadas pelo Senhor contrastavam diretamente com as cintas de folhas de figueira confeccionadas por eles mesmos (Gênesis 3:7). Isso mostra que o problema do pecado e das más escolhas humanas necessita de ajuda externa para ser solucionado.

Ao encenar a maldição da aliança por meio de um sacrifício, Deus revelou Seu plano de redenção ao primeiro casal: Ele mesmo assumiria a culpa dos seres humanos e pagaria o preço da lei. Por isso Paulo afirmou: “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se Ele próprio maldição em nosso lugar” (Gálatas 3:13).

Sendo “o Cordeiro de Deus” (João 1:29), Jesus assumiu o “castigo que nos traz a paz” (Isaías 53:5) e morreu por nós, cumprindo os requerimentos da transgressão de nossos primeiros pais. O brado de Cristo: “Está consumado!” (João 19:30) é a garantia da vitória dos seres humanos sobre a morte.

Por mais que uma escolha errada de Adão e Eva tenha trazido maldição sobre toda a criação, Cristo, por meio de Seu sacrifício, providenciou uma solução para o problema do pecado (ver Romanos 5:18, 19).

Com uma “jogada de mestre”, Deus ofereceu e ainda oferece a cada ser humano a oportunidade de ser vitorioso na batalha contra o adversário (Tiago 4:7). Portanto, para vencer o jogo do grande conflito entre o bem e o mal, basta seguir a orientação Daquele que dá as cartas e fazer a escolha correta (Deuteronômio 11:26-28).


Outras fontes consultadas:

Genesis, Seventh-day Adventist International Bible Commentary (Pacific Press, 2016), de Jacques Doukhan, p. 79-114.

Patriarcas e Profetas (CPB, 2006), de Ellen G. White, p. 52-70.

Texto publicado originalmente na revista Conexão 2.0 nº 52 (outubro-dezembro de 2019), p. 20-23.