Questões sobre os judeus, antissemitismo e adventismo
Como textos bíblicos precisam ser entendidos de uma forma mais profunda para que não haja conclusões equivocadas sobre judeus e antissemitismo.
Não é incomum que os adventistas sejam chamados de judaizantes modernos. Isso em decorrência de nossa posição em relação à manutenção da adoração sabática no sétimo dia, das leis de saúde e ênfase na continuidade da revelação da Bíblia Hebraica no Novo Testamento.
Ou seja, teologicamente somos vistos como herdeiros voluntários do judaísmo. E isso, de alguma forma, parece nos incomodar. Além disso, como entendemos nossa gênese como herdeiros da reforma protestante, também deles herdamos linguagem, visão de mundo e teológica que ainda estão pesadamente imbuídas do antissemitismo que grassou naqueles tempos. A ideia de uma relação hegeliana entre cristianismo e judaísmo, como vimos nos séculos primitivos, acabou por ser reeditada em meios adventistas, agora como adventismo e judaísmo.
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Não encontramos, entretanto, no seio do adventismo atitudes abertamente antissemitas. Na verdade, o antissemitismo em nosso meio é muito mais teórico e teológico do que na prática. Isso se deve, penso eu, pela visão missiológica da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD), que afirma a necessidade pregação a todos os povos, incluindo judeus. Por outro lado, o conteúdo da pregação adventista em muitas situações é ainda pesadamente antissemita, incluindo mensagens de púlpito ou mesmo interpretações das Escrituras, como veremos a seguir.
Relações históricas
Paul Lippi, em uma entrevista reveladora à revista Shabbat shalom, órgão oficial da IASD para a comunicação do ministério entre os judeus, declarou que alguns judeus deixaram a comunhão adventista em decorrência de antissemitismo no púlpito.
Ele entende que o antissemitismo adventista brota de duas variáveis: primeiro, em suas, palavras, o adventismo possui uma má teologia. Segundo motivo é a herança da reforma. No que tange à primeira, tenho alguma dificuldade em concordar. Exceto que haja uma maior especificidade, ou seja, o adventismo ainda possui uma má teologia em relação ao judaísmo, o que reputo como resultado da segunda, ou seja, herança do antissemitismo da reforma.
De fato, quando olhamos para a maneira como interpretamos ditos neotestamentários, principalmente paulinos e joaninos, o amargo sabor do antissemitismo reformado se faz mais presente. Em outros trechos de nossa interpretação profética e do linguajar evangelístico temos o mesmo problema. Vejamos alguns exemplos.
Setenta semanas
Nosso esquema tradicional de interpretação profética assevera que a morte de Estevão marcou o fim do período de setentas semanas de Daniel 9:24-27 e a rejeição dos judeus. É facilmente perceptível o problema missiológico dessa interpretação, mas deixamos de perceber alguns problemas exegéticos dela. Não é possível, no escopo desse texto, adentrar a cada questão que demonstra que é preciso rever certos detalhes, que não mudam a veracidade da interpretação, mas se enquadram melhor no contexto. A profecia deve prover a Daniel conforto e esperança quanto à Jerusalém, e uma mensagem de rejeição do povo não condiz com essa necessidade.
O uso do apedrejamento de Estevão impõe uma carga demasiadamente negativa à profecia, e não considera o uso do termo navi (profeta) em lugar de nevua (profecia). Ou seja, a ideia aqui é selar um profeta e não uma profecia.
O termo utilizado para muitos (rabim) possui conotação de universalidade. E indica que a aliança fortalecida pelo Príncipe Messias incluiria povos e não excluiria. Essa compreensão, aliada com o uso do termo profeta e da expressão “selar... um profeta”, pareceria apontar mais para Paulo, sua conversão e trabalho em prol da universalização da aliança do que para Estevão, que lhe serviria, de fato como catalizador.
Veio para os seus (João 1:11)
Não são poucos os sermões que utilizam esse texto para dizer que Jesus veio para os judeus e os judeus não os receberam. Não obstante, todo o contexto do capítulo 1, formulado no esteio de Gênesis 1, aponta para a humanidade e não para o judaísmo. Foi a humanidade, criada por Deus, que não o recebeu, e não apenas o judaísmo.
Parábola do Filho Pródigo (Lucas 15)
Embora esse texto não seja interpretado de forma antissemita, há um problema. Trata-se da falha em visualizar o foco da parábola, o que acaba sendo um exemplo claro de como uma tradição interpretativa atrapalha a visão correta do texto.
Todo o nosso foco nessa parábola está no filho pródigo, como se este fosse o foco da história. Quando muito, nos movemos para o pai, em um símbolo de Deus, que aguarda do filho que está longe. A parábola, contudo, está no contexto de um diálogo de Jesus com os fariseus diante de sua frieza. E mesmo desdém para com os que aceitavam a mensagem do Mestre.
Nesse diálogo, o foco não está no filho que se foi, nem do pai que espera, mas no filho que não se alegra com o retorno. Um filho que não quer participar da festa, dada para o filho que dilapidou as bênçãos, enquanto ele “fazia tudo” que o pai lhe pedia, ou seja, era obediente ao extremo. O pai, diante das queixas e tristezas do filho mais velho, não se exaspera, nem o lança de sua presença, mas lhe reassegura que ele é seu filho, tão amado quanto o outro e que tudo o que ao pai pertencia, pertencia igualmente ao filho.
É por demais claro o propósito de Jesus e quem cada personagem representa: o filho que partiu são os gentios; o Pai é Deus; e o filho mais velho são os judeus, que ao invés de se alegrarem com o retorno de seus irmãos, acabam por afastá-los. Mesmo assim, ainda são filhos a quem as bênçãos pertencem.
Festas dos judeus
Um exemplo de expressão antissemita comumente utilizada é “festas judaicas”. Não que a expressão em si o seja. O problema é a forma utilizada, posta em contraposição ao sábado, que é a festa de Deus. Os sábados, que chamamos cerimoniais, são meramente “festas judaicas”, são os “vossos sábados", em antítese aos “Meus Sábados”; é a lei cerimonial mosaica, enquanto a lei dos Dez Mandamentos é a Lei de Deus. Mas o fato bíblico está longe dessa distinção pejorativa. Se existem aspectos cerimoniais, legais e morais na Torah, é igualmente certo que tais distintos aspectos estão na mesma Lei e fazem parte de um todo. Não existem festas judaicas, ou sábados judaicos, ou lei judaica: existe apenas A Lei de Deus, dada ao mundo, por meio do povo judeu.
Haveria infinitos outros exemplos de textos sobre os quais poderíamos refletir. E que, em uma leitura mais precisa, levariam para longe do antissemitismo que grassa em nosso meio. Romanos 9-11, por exemplo, deveria ser entendido plenamente como afirmando a realidade de uma união entre o povo de Israel, segundo a descendência, com o povo de Israel segundo o Evangelho, tornando-se em um único povo, ligado à promessa abraâmica.
Por fim, o texto chave para o estabelecimento da nova aliança, citado em Hebreus 8:8, é Jeremias 31:31 em diante. Nos versos 34 e 35 há a promessa de que Israel continuará sendo uma nação diante de Deus, enquanto houver céus. A expressão utilizada no texto indica que Israel continuaria sendo um povo especial para Deus enquanto as leis fixas do universo existissem.
A morte de Jesus
Outro exemplo de antissemitismo que encontramos em nossos sermões e estudos é a declaração não qualificada de que os judeus mataram Jesus. De fato, houve uma conspiração terrena para a morte de Jesus. Focar nesse aspecto, no entanto, obscurece que a morte de Cristo foi, na verdade, fruto de um plano maior, o plano da redenção. É preciso lembrar que Jesus veio ao mundo para ser o cordeiro que tira o pecado do mundo (João 1:28-29) e que Sua Morte é a própria base da esperança bíblica, já declarada em Gênesis 3:15. Ele era, também, a oferta perfeita (Hebreus. 9:12), sem a qual viveríamos em profunda e irremediável desesperança.
Israel cumpriu, inconscientemente, seu papel no plano divino, sendo o cutelo nas mãos da divindade, para ofertar a Si mesmo pela humanidade. Por isso, Jesus disse: "Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem" (Lucas 23:34), mas nós sabemos o que eles faziam e o que Ele fazia.
Reflexões finais
Algumas reflexões merecem ser feitas após analisarmos esses exemplos de leitura antissemita do texto bíblico. Os textos apontam em direção a uma interpretação que não carrega o antissemitismo em seu ferramental. Resta-nos perguntar se isso não diluiria a Igreja Adventista em uma entidade não necessária e daria razão ao dispensacionalismo messiânico. E a resposta é não. Ler o texto bíblico em seu contexto, sem pressuposições antissemitas, nos impede também de ter pressuposições dispensacionalistas. Porque não podemos impedir o texto de dizer o que diz, nem o forçar a dizer o que não diz. E o que o texto diz?
O texto fala de um tempo em que as bênçãos da aliança de Deus com o povo de Israel seriam expandidas, universalizadas para todas as nações (Gênesis 12:1-3; Daniel 9:24-27). O texto também diz que todas as nações são convidadas a adorar a Deus, sem distinção de etnia (Salmo 117; Salmo 15).
Além disso, o evangelho é um fenômeno que desconhece barreiras nacionais (Apocalipse 14:6). O texto também afirma que não existem nós contra eles, mas nós e eles NELE (Romanos 11). Como adventistas do sétimo dia, somos convidados por Deus a pertencer ao grupo maior que as Escrituras chamam de Povo de Deus. Enquanto remanescentes que empunham o estandarte do Messias, reconhecemos a autoridade das Escrituras como um todo e que isso mostra que o Deus que adoramos em nossa vida é o mesmo Deus que chamou, abençoou e cuidou de Israel e que Ele também irá cuidar de nós.
Por fim, não precisam os adventistas se converter ao judaísmo para possuir uma experiência real com Deus. Essa experiência se encontra não na nação de Israel, mas no Messias de Israel, apresentado nas páginas da Bíblia Hebraica, como vindouro, e no Novo Testamento, como já vindo. Se a Ele olharmos e nele focarmos, não haverá mais antissemitismo, nem eles ou nós, mas um único povo o Kol Israel, todo Israel, recebendo o cumprimento da preciosa promessa de Deus a Abraão, em Cristo, O Rei e não seremos mais irmãos separados, mas filhos unidos pela eternidade.
Veja o vídeo sobre Israel nas profecias do fim dos tempos:
Sérgio Monteiro é bacharel em Teologia, mestre em Teologia Bíblica, e cursa doutorado em Bíblia Hebraica pela Theologische Universiteit Apeldoorn.