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Coluna | Felipe Lemos

O improvável cristianismo sem sofrimento

O cristianismo que muitos desejam hoje não contempla o sofrimento por conta de se posicionar ao lado de Cristo. Leia e entenda mais


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Foto: Shutterstock

“Sem mais, que ninguém me perturbe, pois trago em meu corpo as marcas de Jesus”. Gálatas 6:17 (NVI)

Esse texto, no final da carta do apóstolo aos cristãos na Galácia, é bem interessante porque caracteriza um conceito bastante evidente no cristianismo. Para chegar a ele, e dialogar um pouco sobre isso, é importante compreender o que foi, em resumo, a vida do apóstolo Paulo. Um homem de profunda influência no contexto da liderança judaica, com cidadania romana, perseguidor de cristãos e profundo devoto do que cria ser os ideias divinos para a vida de alguém. Teve, então, uma visão que transforma profundamente sua perspectiva de vida e muda completamente de lado.

Passa a ser um cristão, inicialmente visto com desconfiança por seus próprios irmãos, e, sentindo-se chamado por Deus, investe tempo e dedicação para apresentar a salvação de Cristo a pessoas fora do círculo judaico. Os tais gentios, normalmente desprezados ou tratados como seres secundários por judeus do tempo de Paulo, passam a ser o público-alvo do trabalho do apóstolo Paulo.

Só que a trajetória de Paulo não ficou marcada apenas pelos incríveis resultados missionários. Igrejas fundadas, pessoas discipuladas, o carinho de comunidades inteiras, milagres, ressurreições, curas, etc.

O apóstolo carregava no corpo marcas (estigmas), e isso está ligado a um conceito muito típico do cristianismo: o sofrimento por Cristo. O Comentário Bíblico Adventista, tratando desse verso, assinala que “as cicatrizes feitas nele por seus inimigos, enquanto estava a serviço do seu Mestre, falavam de forma eloquente sobre sua consagração a Cristo”.[1]

Lutero comenta a expressão de Paulo quanto a gloriar-se apenas na cruz de Cristo e não em outras coisas, com registro no versículo 14 do mesmo capítulo de Gálatas. O reformador afirma, com base nesse texto, que a glória de um cristão consiste em tribulações, repreensões e enfermidades.[2]

Evidentemente que a vida cristã não se resume a dor e sofrimento. Até porque, em uma leitura mais abrangente e atenta da Bíblia, a alegria e o contentamento surgem como virtudes importantíssimas do cristão.

Há ensino no sofrer

No entanto, quando lemos textos como esses de Gálatas, nós podemos pensar um pouco mais sobre o papel que o sofrimento tem na vida cristã. Há uma relação muito próxima do sofrer do cristão com o desenvolvimento da sua caminhada. Ele sofre, mas aprende com os erros, com as provas pelas quais tem de passar e consegue enxergar a dependência de Deus como algo muito mais amplo do que apenas um papinho ocasional com o Senhor.

O cristianismo parece ter se tornado, na concepção de muitos, apenas mais uma opção de lazer, de convívio social em que o mais importante é a comodidade, o conforto, os excelentes e sofisticados sermões-show, músicas com incríveis performances de verdadeiros artistas e a necessidade de somente ter uma experiência que proporcione prazer e seja agradável ao gosto.

E atenção! Claro que as igrejas, os pequenos grupos, as células, as comunidades religiosas em geral precisam ser atrativas e lugares onde que as pessoas se sintam bem. Mas o apóstolo Paulo, em Gálatas, e em outro trechos da Bíblia, ressalta o papel do sofrimento por Cristo como uma marca que não pode ser eliminada da trajetória cristã. Faz parte dessa realidade.

Tomar uma posição por Cristo implicará, cedo ou tarde, em maior ou menor intensidade, no sofrimento por algo. Seja humilhação, incompreensão, injúria, ridicularização e até perseguição. Nos dois primeiros séculos, os cristãos passaram pela dolorosa experiência de serem perseguidos pelos judeus e pelos romanos. A história confirma isso.  Tácito, um historiador romano, escreveu, no seu livro Anais, a respeito da perseguição na época do imperador Nero e registrou que “portanto, para dissipar o rumor, o Nero forneceu acusados e infligiram as melhores punições sobre aqueles, ressentidos por seus ultrajes, a quem o público chamou Chrestiani (a fonte do nome era Christus, sobre quem, durante o comando de Tibério, as represálias foram infligidas pelo procurador Poncio Pilatos”. [3]

O curioso é que, apesar de toda a oposição sistemática e oficial, o cristianismo dos primeiros cristãos não apenas se manteve vivo, mas cresceu e se tornou tão importante a ponto de o Império Romano, posteriormente por meio de Constantino, o Grande, se dar por vencido e preferir criar um sincretismo entre o paganismo e essa religião que insistia em não desparecer.

Na origem dessa resistência cristã estava presente o sofrimento por Cristo, como um pilar essencial. Cristãos deram a sua vida como mártires, outros ficaram vivos porém sob forte pressão e violência.

Ninguém está afirmando aqui que a vida cristã deve se resumir a choro e lamentação, mas é importante enxergar o sofrimento como uma parte historicamente e conceitualmente fundamental para o cristianismo bíblico. Não dá para se fugir dessa condição, mas compreender, como orienta Paulo, que “porque para mim tenho certo que os sofrimentos do tempo presente não podem ser comparados com a glória a ser revelada em nós” (Romanos 8:18).

 

[1] Comentário Bíblico Adventista, vol. 6, página 1096.

[2] Luther, Martin. Commentary on the Epistle to the Galatians, página 425.

[3] Tácito. Annals, página 325.

Felipe Lemos

Felipe Lemos

Comunicação estratégica

Ideias para uma melhor comunicação pessoal e organizacional.

Jornalista, especialista em marketing, comunicação corporativa e mestre na linha de Comunicação nas Organizações. Autor de crônicas e artigos diversos. Gerencia a Assessoria de Comunicação da sede sul-americana adventista, localizada em Brasília. @felipelemos29