Mulher que sofreu abuso sexual esquece ódio com ONG para crianças carentes
Abusada sexualmente pelo pai desde os seis anos, aos 15 foi estuprada pelo delegado ao denunciar o agressor
São Paulo, SP… [ASN] Aos seis anos, Silvana Ferreira questionava se tinha uma vida normal comparada à das outras crianças de sua idade. Isso porque, nesta época, começaram os abusos sexuais praticados pelo pai. “Foi na cama da minha mãe. Minha mãe tinha saído e eu fui deitar com o meu pai. Aí ele começou a mexer comigo e daí começou toda essa coisa horrível que é o abuso”, lembra.
Hoje, uma mulher de 52 anos, Silvana recorda com muitas lágrimas do trauma que a violência sexual deixou. Abusada pelo pai, rejeitada pelos familiares, tentou quebrar o silêncio logo no início das agressões. “Quando eu descobri que aquilo não era normal, eu pensei que não poderia ficar quieta. Mas minha mãe e minhas irmãs não acreditavam em mim. Eu sempre era a louca, a gata seca”, sublinha.
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Seu grito de socorro foi silenciado na escola, em casa e na igreja. “Eu era de uma época em que as pessoas não acreditavam nas crianças”, comenta. Sob as ameaças de morte, os estupros aconteciam em casa e no trabalho do pai. “Ele chegava a colocar um revólver do lado da cama para poder me violentar."
No decorrer dos anos, os abusos continuaram, e junto veio o espancamento. “Um dia eu quebrei uma porcelana da minha mãe e meu pai me bateu muito. Eu tinha feridas nas nádegas e a calcinha chegou a entrar e grudar na pele. Minhas irmãs tentaram me ajudar, colocaram uma bacia de água morna, que fiquei horas sentada dentro, até desgrudar da carne. Ninguém entedia o que estava acontecendo, mas eu sabia que não era porque eu tinha quebrado a porcelana da minha mãe. Era porque eu recusei ir dormir com meu pai", explica.
No outro dia, a direção do colégio soube da violência.
“A professora me mandou sentar, mas eu não conseguia. Até que ela me mandou para a diretoria. E lá eu pedi para que levantassem o meu vestido e vissem o porque eu não queria sentar. Quando elas levantaram, começaram a chorar quando viram as feridas, e eu contei tudo o que acontecia em casa. Eu acho que elas chamaram a minha mãe, mas ela não fez nada”, lamenta.
As más memórias ficaram na mente de Silvana e se misturaram com os ensinamentos religiosos que recebia durante seu crescimento. A família realizava cultos em casa e era ativa na igreja. “Meu pai abusava de mim e depois reunia a família para fazer o culto, como se nada tivesse acontecido”, revela. “Eu odiava todo mundo. Achava que Deus não me amava. Eu era tão pequena e meu pai fazia aquilo comigo.”
Filho do abuso
A situação não melhorou na adolescência. Os pais romperam o casamento e a mãe culpou Silvana pelas intrigas que resultaram na separação. No Mato Grosso, com 15 anos, ela estava prestes a tomar uma decisão. “Eu pensei: vou matar meu pai ou denunciar ele. Resolvi denunciar. Cheguei na delegacia, sentei e coloquei as mãos juntas às pernas. Estava com medo do delegado. Lá eu contei tudo: aconteceu isso, isso e isso. Ele me tratou muito bem e disse que eu deveria fazer o exame de corpo de delito. E lá ele me abusou e eu tive o meu filho”, recorda.
Silvana só percebeu que estava grávida quando a gestação se tornou evidente. “Eu tentei me matar e matar o meu filho”, lamenta.Durante sua vida, ela tentou praticar o suicídio por três vezes. Apesar de ser rejeitado na gravidez, no nascimento do filho, ao olhar para a o bebê, ela desenvolveu o amor materno. “Quando eu vi ele olhando para mim, eu o amei muito, e pensei que iria cuidar daquela criança.”
Segundo Silvana, ela precisou mudar de cidade, pois não acreditavam na sua versão da história.
Tentativa de homicídio
Sem ter onde morar, a jovem decidiu viver com o pai. “Eu pensei que ele tinha mudado. Mas não mudou. Tentou mexer comigo, mas eu não deixei. Contei para a minha madrasta. Quando ele soube, tentou me matar. Tive que fugir com meu filho, e ele saiu atrás de mim”, narra.
Sem ter para onde ir, Silvana morou por um período com o filho na Febem Tatuapé (SP). As mudanças em sua vida aconteceram gradativamente, e ela sonhou em voltar aos estudos e fazer o curso de Medicina, mas a situação financeira frustrou seus planos.
Uma nova família
No curso de Enfermagem, ela se apaixonou por um rapaz, que atualmente é seu esposo e com quem teve três filhos. Mas o trauma da violência a atormentava. Assim, um quadro de depressão severa surgiu.
“Eu tomava uma sacola de antidepressivos que não tinham efeito nenhum. Eu ficava na cama o dia todo. Minha filha falava assim: 'Mãe, eu ia para a escola tão preocupada com você naquela cama'", sublinha.
Mas Jesus me tirou daquela cama. Sabe como? Com um monte de crianças. Eles ficavam na frente de casa atormentando a minha vida. Eram terríveis. Gritavam, jogavam bola, faziam xixi. Eu falava: eu não os suporto! Peguei um balde de água, fui na frente e "tchuaaa". Joguei um balde de água nelas e saíram correndo. E eu pensei: "Que bom." E voltei para a cama, e Jesus falou comigo”, descreve.
A voz que Silvana escutou era um pedido para que o culto familiar, que praticava com seus filhos, fosse repetido com as crianças da comunidade. Na época, Silvana tinha resgatado a fé que aprendeu quando pequena.
“A mulher do pastor me ensinou a fazer o culto e disse para eu começar fazendo bolo. Então eu fazia bolo. As crianças da comunidade eram muito pobres e não tinham [isso] em casa. Então elas comiam o bolo e na outra semana voltavam. Aí eu comecei a fazer lembrancinhas com versos bíblicos, abrir a Bíblia e falar das histórias. Um dia, ensaiamos uma peça de teatro e apresentamos para os pais na rua. Então os pais foram percebendo que queríamos mostrar a Bíblia para as crianças", explica.
"Quando eu vi, eu não sentia mais ódio. E cadê a depressão e os antidepressivos? Fui no médico e fui liberada para trabalhar. Mas eu disse para Deus: "Não quero mais trabalhar. De agora em diante, o Senhor vai ser o meu patrão. Se eu comer, o Senhor que vai me dar, se eu vestir, o Senhor que vai me dar, se eu não tiver nada disso é porque o Senhor não quer me dar. De agora em diante, vou trabalhar com todas as crianças que o Senhor me der, a começar com as crianças da comunidade”, conta.
E assim foi. Seu projeto pessoal teve início há 26 anos, no extremo leste de São Paulo (SP), na periferia do Conjunto José Bonifácio. O local, atualmente, é uma organização não governamental (ONG) com aproximadamente 40 crianças auxiliadas. O ambiente é preparado com ala para brincadeira, alimentação saudável e culto. As reuniões acontecem às quartas-feiras e sábados, com momento de refeição, adoração infantil, oração e brincadeiras. Silvana explica que tudo é fruto de doações.
O Perdão
“Se eu choro contando isso, não é porque eu não perdoei o meu pai, mas porque dói e é um trauma que eu vou carregar para sempre. Mas Jesus não quer deixar ninguém caído. Ele providência o socorro para mim. Eu aprendi a viver uma novidade de vida todos os dias, pensando nos planos de Deus. Um dia eu fui visitar o meu pai, e ele estava de fralda em uma cama. Ele começou a chorar e disse que estava caminhando para a morte. Eu disse que não, que logo ele iria estar com a família. Mas ele segurou a minha mão e disse: "Filha, perdoa o pai, filha. Você me perdoa? Eu disse assim: "Pai, olha para mim. Eu não tenho ódio de você. Pai, eu te perdoo. Eu te perdoo”.
Um recado para você
“Eu digo: Sofreu violência hoje, alguém te violentou? Por favor, essa dor é terrível, eu sinto a sua dor, eu sinto isso em você. Por favor, vá buscar ajuda, sim, de um profissional, mas primeiro olhe para Jesus. Se não, não vai dar certo e aí você vai cair no fundo do abismo e ninguém tira você de lá, a não ser você mesma segurando nas mãos de Jesus. Todos os dias, eu sinto Jesus me segurando para ficar em pé”, apela.
Desde 2002, a Igreja Adventista na América do Sul mantém o projeto Quebrando o Silêncio, que combate, principalmente, a violência doméstica. Embora seja realizada ao longo de todo o ano, as principais atividades do projeto, como passeatas e fóruns, ocorrem no quarto sábado do mês de agosto. Para participar ou receber mais informações, visite um templo adventista (clique aqui para encontrar o mais próximo de seu endereço) ou acesse quebrandoosilencio.org [Equipe ASN, Michelle Martins]