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Entre rios e matas: início da Igreja Adventista na Amazônia

A origem do movimento adventista na região norte do Brasil fala muito de ajuda humanitária e apoio permanente a comunidades.


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A enfermeira Jessie Halliwell em ação humanitária no convés do Luzeiro II, no rio Amazonas. (Foto: Centro da Memória Adventista)

Em novembro, embarquei em um navio em Belém do Pará, rumo à cidade de Breves, capital econômica do Arquipélago do Marajó. Somando-se as viagens nas ilhas e o retorno a Belém, foram 72 horas embarcado naquela semana. Hoje já é possível acessar a internet, quebrando a monotonia das viagens. Apesar disso, o desafio não é pequeno. 

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No trajeto, além das águas dos rios, a paisagem é formada pelo verde da mata Amazônica. Chama a atenção o número de igarapés que formam um labirinto belo e perigoso, onde é fácil se perder. Nos programas que realizei, muita gente compareceu. A presença dos membros em um dia de semana só não me surpreendeu porque atuo na região há uma década e essa disposição dos adventistas constitui a regra, e não a exceção.     

Embora o norte tenha grandes cidades, são os rios, as matas e os igarapés que formam seu território e dão acesso às zonas urbanas, sendo o habitat de boa parte da população, além de seu maior patrimônio.  

Luzeiros e a história

A Igreja Adventista do Sétimo Dia no norte do Brasil vive um momento áureo de celebrações. Em 2021, o Projeto Luzeiro completou 90 anos (1931-2021); em 2022, o Maranhão completou um século do adventismo nesse Estado (1922-2022). No extremo norte, os adventistas celebraram 70 anos da primeira congregação do Amapá (1953-2023). Tais datas oferecem a oportunidade para um resgate histórico que pode motivar um maior envolvimento missionário em outros lugares. 

Em meu livro A Igreja das Águas: uma breve história da Igreja Adventista do Sétimo Dia no Arquipélago do Marajó (1937-2020), descrevo a região amazônica e sua evangelização inicial e aqui fiz adaptação.  

“A Bacia Amazônica, com seus quatro milhões de quilômetros quadrados, possui características extraordinárias, em termos geográficos. Um hidrólogo diria: ‘é o maior complexo fluvial do mundo. Um geólogo, considerando-a segundo seu pronto de vista, a definiria como: “a maior bacia sedimentar do planeta”. Segundo um biólogo, seria: ‘o maior ecossistema florestal de toda a biosfera.’ [...] Quando se observa o mapa daquela região [...] tem-se a nítida impressão de que uma grande rachadura, com inúmeras trincas menores e convergentes, teria ocorrido, em virtude de qualquer acidente, ao longo da linha do Equador, estendendo-se desde os paredões abruptos da cordilheira dos Andes até o oceano Atlântico’.  Além disso, “por essa rachadura correm 175 milhões de litros de água a cada segundo, o que corresponderia a um tráfego absurdo e inimaginável de 500 milhões de gigantescos caminhões, por dia, transportando água para o oceano!” (Branco, 1995, p. 10-11).

Apesar da área da Amazônia corresponder a mais da metade de nosso País, sua população representa menos de 10% da população brasileira. A Amazônia legal é formada por sete Estados completos (Acre, Amazonas, Roraima, Rondônia, Pará, Amapá, Mato Grosso), e partes do Tocantins e Maranhão. 

Fases da evangelização da Amazônia

Segundo Wilson Borba (2009), houve cinco fases distintas na evangelização da região amazônica. As três primeiras estiveram sob a responsabilidade da antiga União Missão Este Brasileira, graças ao apoio da Divisão Sul-Americana (sede sul-americana adventista). Embora haja relatos de pessoas que, já em 1910, desejavam adentrar a região, a “primeira fase de evangelização da região norte brasileira começou na organização da União Missão Este Brasileira em 1918, e estendeu-se até a chegada de J. L. Brown em 1927” (Borba, 2009, p. 84). Nessa fase, as pessoas da região tiveram acesso a literatura adventista e surgiram os primeiros interessados. Infelizmente, não havia missionários para atender tal grupo.

Em 1920, Oliver Montgomery e W. H. Williams, respectivamente presidente e secretário da sede sul-americana adventista, à época localizada em Buenos Aires, Argentina, realizaram uma viagem exploratória de quatro a seis meses pelo rio Amazonas com o intuito de enviar posteriormente colportores à região. Segundo Greenleaf, “eles se tornaram os primeiros adventistas a cruzar a América do Sul percorrendo o maior rio do mundo. Sua aventura despertou um interesse que os líderes da igreja não podiam abalar, mas tampouco eram capazes de satisfazer rapidamente. Ao visitar a escola de treinamento no Brasil, o presidente da Divisão narrou a história com tanto entusiasmo que dois alunos partiram para começar o trabalho missionário na região amazônica, mas seu projeto não foi permanente” (Greenleaf, 2011, p. 351-352).    

A segunda fase de evangelização da Amazônia consistiu na organização da sede adventista conhecida como Missão Baixo Amazonas (MBA), e no envio de obreiros para a região. Em 1927, o pastor John L. Brown foi nomeado presidente dessa sede administrativa e levou consigo os dois melhores colportores da União Este; André Gedrath e Hans Mayr, que venderam literatura e despertaram interesse pelo adventismo (Lessa, 2016, p. 30; Greenleaf, 2011, p. 352). Esses ministros da página impressa se tornaram os colportores pioneiros no norte do Brasil e prepararam o caminho para o ministério da Palavra falada.

O território compreendido pela MBA (com sede em Belém) era formado pelos Estados do Amazonas, Pará, Ceará, Piauí e Maranhão, incluindo os territórios do Acre, Amapá, Rio Branco e Rondônia, abrangendo uma área de 4.273.689 quilômetros quadrados (Lessa, 2016, p. 31).

Três viagens missionárias

Ao todo, três viagens marcaram o início oficial da obra adventista na região amazônica. A primeira foi realizada por John L. Brown, em 1927, de Belém a Manaus, em um navio a vapor, com duração de 10 dias. Parte da literatura que ele distribuiu chegou às mãos de José Batista Michiles[1], que se tornou pioneiro da obra adventista em Maués. A segunda viagem, em abril de 1928, contou com a presença de Elmer H. Wilcox, presidente da então sede administrativa adventista conhecida como União Este Brasileira, e refez a rota anterior. Em Maués, visitaram a Fazenda Centenário, encontrando a família Michiles, que já guardava o sábado. No Rio Maués, encontraram mais três famílias guardadoras do sábado e realizaram reuniões na vila Cinco Quilo, habitada por índios. A terceira viagem aconteceu em maio de 1929, por Leo Halliwell, acompanhado por Elmer H. Wilcox, Hans Mayr e Manoel Pereira. Eles visitaram as famílias Michiles e os índios, e os encontraram firmes na fé adventista (Lessa, 2016, p. 32-36).

A chegada do casal de missionários norte-americanos Leo Blair Halliwell e Jessie Rowley Halliwell marcou o início da terceira fase da evangelização da Amazônia. Leo substituiu o pastor Brown como presidente da MBA. Nas mãos do pioneiro, a MCB tomou forma, iniciando um período inesquecível das missões adventistas no norte brasileiro. 

Ao assistir reuniões evangelísticas e ler livros com relatos missionários, como Terras dos Incas, de Stahl[2], Halliwell decidiu dedicar sua vida em um campo missionário. Depois de atuar em seu país como evangelista, foi chamado ao Brasil, trabalhando sete anos na Bahia antes de ir a Belém (Ramos, 2009, p. 21).

Ramos relembra que “Leo Blair Halliwell (1892-1967) foi a primeira pessoa que atuou no serviço médico-missionário no norte do Brasil. Nascido em Odessa, Nebraska, formou-se em Engenharia Elétrica. Em 1916, em plena Primeira Guerra Mundial, muitas fábricas de armamentos foram abertas e Leo trabalhou em uma delas, na firma Hart Parr Tractor Co., no departamento de eletricidade. As fábricas funcionavam 24 horas por dia, em turnos de oito horas, para não faltar suprimento bélico para a Inglaterra. Nessa época, recém-casados, Jessie e Leo já faziam parte da Igreja Adventista” (Ramos, 2009, p. 19-20).

Lessa descreve Halliwell como um “homem perspicaz”. Ao estudar as características locais, concluiu que a obra médico-missionária por meio das lanchas devia ser acrescentada ao trabalho da colportagem. Além disso, ele decidiu fazer evangelismo público, que se tornaria a marca da Igreja no norte. Até então, somente Gedrath e Mayr haviam usado livros, revistas e folhetos como métodos de evangelismo na região. Halliwell continuou a mesma estratégia e se valeu do ministério por meio de cartas, as quais encorajaram os destinatários, oferecendo-lhes literatura gratuita. Muitos enviaram seus endereços e a literatura foi enviada por toda a Amazônia. Uma das primeiras grandes séries de conferências evangelísticas foi realizado por Halliwell no Teatro Manaus, em 1932 (Lessa, 2016, p. 36-38).

Para não depender dos barcos comerciais e facilitar o trabalho da colportagem, André e Mayer resolveram construir suas próprias lanchas, sendo a de Hans Mayer, Ulm an der Donau a “primeira embarcação missionária adventista construída no Brasil” (Lessa, 2016, p. 48).

Luzeiro

Halliwell também decidiu construir uma lancha para facilitar, ampliar, e multiplicar seu ministério entre os ribeirinhos. Ele e sua esposa Jessie conseguiram 5.400 dólares de doações em uma viagem de férias aos Estados Unidos, em 1930, do fundo de projetos dos Missionários Voluntários. Com isso, construíram uma lancha com 11 metros de comprimento por 3,5 de largura. Em três meses, o “anjo branco” estava pronto.

No dia 4 de julho de 1931 a Lancha Luzeiro I foi inaugurada em Belém do Pará (Ramos, 2009, p. 26-27). A primeira viagem foi quase de imediato. Jessie, que era enfermeira, tratou 300 pacientes e o casal realizou uma série evangelística em Maués. Os Halliwell subiam o Amazonas, todos os anos de Belém a Manaus, em uma viagem de 3.200 quilômetros, ida e volta. Antes de retornar para casa, costumavam percorrer entre 16.000 e 24.000 quilômetros, tratando enfermos, ensinando a Bíblia e plantando as primeiras igrejas para os ribeirinhos (Greenleaf, 2011, p. 356).

Depois da Luzeiro I, uma frota de lanchas identificadas por números sequenciais continuou realizando o trabalho no Amazonas. Dessa forma, a obra médico-missionária prosperou mais que em qualquer outro lugar na América do Sul. Além do Amazonas, as demais regiões brasileiras também tiveram suas próprias lanchas, sendo um dos melhores métodos no trabalho missionário por décadas (Cavalcanti, 2010). Esse ministério atuou por 70 anos, mas, após a década de 1990, quase foi extinto por vários fatores. Em 2000, houve um renascimento do trabalho com as lanchas, iniciando no Estado do Amazonas e recentemente (a partir de 2016) no Pará.

As primeiras igrejas que surgiram na região Norte foram organizadas em São Luís do Maranhão e em Maués, no Amazonas, em 1929. Algumas escolas paroquiais também foram estabelecidas, dando início à obra educativa adventista junto a ribeirinhos, cidadãos das cidades e indígenas.

A quarta fase da evangelização da Amazônia ocorreu com a organização da União-Missão Norte Brasileira - UNB, no dia 08 de dezembro de 1936, em um concílio da sede sul-americana adventista. Ela se desmembrou da União Este, e contava com 253 membros batizados e 400 alunos matriculados na Escola Sabatina. Finalmente a quinta fase começou em 1955, quando Walter Streithorst foi eleito presidente da UNB e os brasileiros nativos assumiram, definitivamente, a obra na região (Lessa, 2016, p. 98-99, 2002-218).

Independentemente do lugar onde moramos, todos temos nossos próprios rios, matas e igarapés, que podem simbolizar os desafios da missão, tanto na Amazônia como nas demais regiões brasileiras. Como os missionários que vieram ao norte e atuam lá atualmente enfrentaram seus temores e construíram uma igreja motivada, todos podem fazer o mesmo. Basta desenvolver, pelo poder de Deus, estratégias para evangelizar seu entorno, seja em qual for a região.

Onde você mora, seja uma metrópole como São Paulo, um reduto religioso como Juazeiro do Norte, uma ilha de Fernando de Noronha ou qualquer outro lugar, o que define o sucesso em nossa jornada é continuar navegando em busca de pessoas que queiram ouvir sobre a salvação, pelas quais Cristo entregou a vida.  

Ribamar Diniz é mestre em Teologia (SALT/FADBA), especialista em Missão Urbana (FADBA), mestre em História Social (UNIFAP) e pastor da Missão Pará-Amapá.  


Bibliografia: 

BRANCO, Samuel Murgel. O desafio amazônico. São Paulo: Moderna, 16. ed., 1995.

BORBA, Wilson Roberto de. A base missionária adventista do sétimo dia brasileira: sua formação, consolidação e expansão. 2009. 597f. (Tese de doutorado). Engenheiro Coelho, SP: Unasp, 2009.

CAVALCANTI, Abdoval. Luzeiros: Conheça a surpreendente história das lanchas missionárias adventistas no Brasil. Niterói, RJ: Ados, 2010.

DINIZ, Ribamar. A Igreja das Águas: Uma breve história da Igreja Adventista do Sétimo Dia no Arquipélago do Marajó (1937-2020). Macapá, AP, edição do autor, 2021.   

GREENLEAF, Floyd. Terra de esperança: o crescimento da Igreja Adventista na América do Sul. Tradução de Cecília Eller Nascimento. 1. ed. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2011.

LESSA, Rubens. Construtores de esperança: na trilha dos pioneiros adventistas da Amazônia. 1. ed. Tatuí, SP: CPB - Casa Publicadora Brasileira, 2016.

RAMOS, Ana Paula. Desafio nas águas: um resgate da história das lanchas médio-missionárias da Amazônia. 1. ed. Tatuí, SP: CPB, 2009.

[1] A biografia de uma das descendentes da família, Eunice Michiles, que se tornou a primeira senadora do Brasil, podem ser lidos em BARBOSA, Henrianne. Eunice Michiles: A primeira senadora do Brasil. Arthur Nogueira, SP: 2006.  

[2] O título original da obra é STAHL, F. A. In the Amazon Jungles. Moutain View, CA: Pacific Press, 1932.