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Política

Entre ídolos e ideologias: quando o evangelho vira partidarismo 

Um alerta importante sobre os riscos de se transformar a religiosidade bíblica em objeto de discussão com viés político-partidário


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A Bíblia Sagrada apresenta claras orientações sobre os problemas do partidarismo. (Foto: Shutterstock)

Era uma vez um reino dividido... Não por espadas ou muralhas, mas por bandeiras. Vermelhas, verdes, azuis. No meio desse campo de batalha simbólico, havia uma igreja, uma casa de oração transformada, pouco a pouco, em quartel de opiniões, trincheira de ideologias e palanque de paixões partidárias baseadas em ideologias. 

O púlpito, que antes ecoava a mensagem do reino eterno, agora tremia sob o peso de discursos terrenos. E os cristãos começaram a se parecer mais com ativistas ou militantes de partidos em guerra do que com peregrinos em missão. 

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Neste cenário, precisamos fazer algumas perguntas urgentes: O que acontece quando a fé se torna refém de um partido ou ideologia? Por que não devemos transformar a política em religião e a religião em palanque? Que tipo de testemunho estamos oferecendo ao mundo quando permitimos que ideologias políticas moldem nossa compreensão do evangelho? 

Mundo em ebulição 

Antes de qualquer resposta, vale considerar algumas situações críticas que nos cercam. Vivemos uma era de transformações vertiginosas e desafios profundos, em que a política global parece caminhar sobre terreno instável. O cenário de 2025 expõe um mundo em permanente tensão, abalado por rivalidades geopolíticas, disputa feroz de interesses e erosão acelerada de valores. 

Os conflitos armados seguem assombrando o planeta. A guerra na Ucrânia, longe de um desfecho, arrasta-se há mais de três anos como uma ferida aberta no leste europeu, com resultados devastadores para as populações locais e para o equilíbrio político entre o Ocidente e a Rússia. A tentativa russa de anexar áreas do território ucraniano, somada a outras exigências para se falar em paz, constitui uma afronta flagrante a qualquer princípio de justiça. Afinal, o território não é apenas uma área geográfica, mas “um espaço de narrativas, identidades coletivas e imagens científicas, incluindo as cartográficas, moldadas por tradições formais e informais complexas”, como destaca o cientista político Oscar Mazzoleni (Territory and Democratic Politics [Palgrave Macmillan, 2024], p. 128). 

No Oriente Médio, a escalada entre Israel e grupos terroristas como Hamas e Hezbollah extrapola os limites regionais. A dificuldade em alcançar uma solução reflete a complexidade histórica, política, econômica, ideológica e religiosa de um conflito marcado por décadas de violência e desconfiança. Interesses externos e rivalidades locais continuam a alimentar o ciclo de hostilidades, tornando a paz duradoura um desafio quase insuperável. Infelizmente, a proposta de dois Estados (Israel e Palestina), que parece racional, ainda não é aceita por muitos. 

Nesse ambiente, a ordem global também se redesenha. Enquanto na época da Guerra Fria o bloco dos Estados Unidos e seus aliados representava 64% do PIB global, o bloco da União soviética e seus aliados somava 19% e os países não alinhados 8%, hoje o bloco norte-americano e aliados equivale a 30%, o subbloco europeu a 13%, o bloco dos desafiantes (incluindo China e Rússia) a 27% e os países com múltiplos alinhamentos a 22%. Os dados são do estudo State of Our World 2025, do Oliver Wyman Forum. 

No mundo multipolar atual, Estados Unidos, China, Rússia, União Europeia, Índia e outras nações disputam influência política, econômica e tecnológica. E novas formas de imperialismo surgem no horizonte, enquanto o multilateralismo, que por décadas sustentou algum equilíbrio, encontra-se sob crescente pressão. Instituições internacionais como a ONU (Organização das Nações Unidas) e a OMS (Organização Mundial da Saúde) são vistas com crescente desconfiança, acusadas de ineficácia ou parcialidade.  

Democracias mais fracas 

Além das ameaças bélicas, outro fenômeno inquietante se espalha silenciosamente: o enfraquecimento das democracias. Em diversos países, vemos o crescimento do autoritarismo, a supressão de liberdades civis, a manipulação eleitoral e o uso da desinformação como arma política. O populismo, impulsionado pelas redes sociais, tem corroído instituições e distanciado as sociedades de um debate saudável. A polarização se adensa como nuvem de tempestade sobre a paisagem social. O diálogo cede lugar ao duelo, e o debate, que deveria ser a arena da convivência democrática, é substituído por trincheiras cavadas na areia movediça das narrativas absolutas. 

No Brasil e em outros países sul-americanos, a tensão crescente entre defensores de polos políticos antagônicos reflete uma crise mais ampla de confiança nas instituições, radicalização ideológica e politização de entidades independentes. Esse cenário alimenta a instabilidade democrática, fragiliza o diálogo e coloca os países entre as nações em que a polarização política se tornou um risco real à coesão social e à governabilidade. 

O nacionalismo religioso, ao fundir fé e identidade nacional, transforma a devoção em arma e o “nós” contra “eles” em doutrina. Philip Gorski descreve o nacionalismo cristão como uma “espécie de hiperpatriotismo apocalíptico e nativista” (American Covenant [Princeton University Press, 2017], página 7). Esse fenômeno alimenta conflitos, sufoca minorias e mina os princípios democráticos, tornando-se uma das forças mais perigosas por trás da polarização global e da escalada da intolerância. Como discorrem N. T. Wright e Michael F. Bird em Jesus and the Powers (Zondervan, 2024), a mensagem do reino de Deus confronta os poderes terrenos, mas os cristãos não são chamados a instituir uma teocracia. 

A imposição de altas tarifas sobre importações e exportações entre países, que recentemente ganhou um novo capítulo, tem trazido grande turbulência, com potencial para causar graves efeitos colaterais. As crises migratórias atingem níveis alarmantes. O total estimado de migrantes internacionais chegou a 304 milhões, o que representa 3,7% da população mundial, segundo um estudo da ONU intitulado International Migrant Stock 2024, divulgado em 2025. Milhões de pessoas são forçadas a deixar suas casas devido a guerras, fome, perseguições ou mudanças climáticas.  

Para além das estatísticas, o problema ganhou contornos de um radicalismo sem precedentes. Enquanto alguns países lutam para acolher e integrar, vários outros erguem barreiras. A pressão social, política e policial é enorme, e o discurso xenofóbico encontra terreno fértil em tempos de medo. A radicalização das políticas de imigração revela uma mudança ideológica profunda, cujos efeitos atravessam fronteiras e impactam o fluxo migratório em escala global. 

Em um mundo em rápida mudança, pautas culturais, sexuais e éticas se tornaram campos decisivos de disputa pelo futuro da sociedade. Esses temas expõem o choque entre tradições históricas e novas visões de mundo, exigindo coragem e lucidez para lidar com sua complexidade. 

Acrescente-se a isso o impacto avassalador da tecnologia. Recursos digitais e inteligência artificial avançam em ritmo acelerado, desafiando governos a estabelecer regulamentações capazes de garantir segurança e ética. O uso dessas tecnologias para manipular informações e os ataques cibernéticos a infraestruturas críticas são apenas alguns dos novos riscos que se impõem. 

Paralelamente, o planeta clama por socorro diante da crise climática. Enchentes devastadoras, secas prolongadas e ondas de calor já não são previsões distantes, mas realidades cotidianas. Esses novos desafios globais e nacionais, somados aos persistentes problemas de desigualdade, corrupção, insegurança e violência, fazem do mundo um lugar cada vez mais instável, sombrio e difícil de governar. 

A tentação da partidarização 

Nesse ambiente carregado de tensão, em que cada grupo ergue seu altar de certezas e sacrifica a escuta em nome da lealdade partidária, os cristãos podem ser tentados a trocar a cruz pelo estandarte de suas preferências políticas, como se o reino de Deus, que transcende as ideologias humanas, estivesse circunscrito à lógica de um lado apenas. O reino é sequestrado e instrumentalizado por ideologias ditas alinhadas ao que se conhece como esquerda e direita. 

Os apelos ideológicos e o sentimento de urgência moral tornam atraente a ideia de alinhar o evangelho a um partido, a uma bandeira ou a um líder humano. Em certos casos, a lealdade política tem rivalizado com a fidelidade ao evangelhoNo entanto, essa mistura é como água e gasolina: pode parecer compatível à primeira vista, mas, quando posta sob pressão, explode em divisão e destruição. 

A partidarização da fé se insinua de forma sutil, oferecendo aos discípulos de Cristo o cálice do poder imediato, do engajamento inflamado e da retórica sem misericórdia. É fácil confundir zelo com raiva e convicção com militância cega. Essa tendência está criando raízes no solo do cristianismo. 

Essa tentação não é nova, mas hoje ela ressurge com intensidade febril, amplificada pelas redes digitais que transformam cada cidadão em pregador de suas próprias certezas, e cada feed em púlpito. A cruz, que chama à renúncia de si, à humildade e ao amor pelo inimigo, é substituída por uma espada empunhada em nome de causas que, ainda que legítimas em parte, não podem usurpar o trono de Cristo. 

Quando a fé se torna bandeira de ideologias humanas e a identidade cristã é sugada pelo vórtice da polarização, o evangelho começa a ser moldado à imagem de um projeto político, e não o contrário. Jesus deixa de ser o Cordeiro que tira o pecado do mundo para Se tornar “mascote” de partido – um Cristo capturado por slogans, instrumentalizado por discursos, distorcido por paixões ideológicas. 

Não é só a religião que influencia a política; uma identidade partidária forte tem efeitos religiosos, como mostra Michele F. Margolis no livro From Politics to the Pews (University of Chicago Press, 2018). 

Além disso, quando a política sequestra a fé, o sal perde seu sabor e a luz se apaga. As poderosas metáforas de Cristo em Mateus 5:13-16 não são meras figuras poéticas; são diagnósticos espirituais profundos. Elas apontam para uma atuação consciente e equilibrada, sem imposição nem fuga. A ausência do sal deixa o mundo insosso e vulnerável à corrupção, mas o excesso o torna intragável, adoecendo o corpo social. A luz, escondida, falha em guiar; mas, quando confundida com outras luzes ou intensificada de modo descontrolado, cega em vez de revelar, e já não distingue os contornos da geografia moral e ética. Cristo nos chama a sermos presença transformadora: sal que cura e luz que revela. 

Portanto, é urgente que os cristãos olhem para além das bandeiras humanas e recobrem o senso de alteridade (olhar o outro) e transcendência que o evangelho exige. O reino de Deus não é de direita nem de esquerda, nem conservador ou progressista, mas de justiça, paz e alegria no Espírito Santo. A igreja não é um comitê de campanha, mas um corpo vivo que testemunha o amor de Cristo em meio às ruínas do ódio. Em tempos de polarização, permanecer fiel a Jesus é resistir à tentação de ser devoto de César. A vocação do cristão não é a de um soldado de guerra política e cultural, mas a de um embaixador da reconciliação. 

“A cruz oferece uma justificativa radicalmente diferente para a participação política cristã, pois demonstra que não vencemos por demonstrações de poder”, escreve Daniel K. Williams. “Ela também mostra que já conquistamos a vitória definitiva e que nosso Rei soberano já está no trono” (The Politics of the Cross [Eerdmans, 2021], p. 9). A cruz redefine vitória e poder: na política do evangelho, o trono é conquistado com sangue, não com espada; não conquistamos, fomos conquistados. 

Cidadania sem siglas 

As igrejas comprometidas com o evangelho, bem como seus líderes, têm sólidos motivos para evitar qualquer tipo de engajamento partidário, mesmo quando ele se apresenta de forma sutil ou informal. O apóstolo Paulo adverte que os cristãos não devem agir por “partidarismo” (Filipenses 2:3, ARA). O termo grego utilizado, eritheia, originalmente denotava “ambição egoísta” e “rivalidade”, mas, no contexto político, também era empregado para descrever “intrigas de partido”, “disputas por poder” ou “formação de facções”. O termo indicava ainda candidatos a cargos eletivos que cortejavam o aplauso popular por meio de truques e métodos ilegítimos. 

Embora Paulo estivesse tratando das relações dentro da comunidade cristã, o princípio tem implicações mais amplas, inclusive para a maneira pela qual os cristãos se posicionam diante da política. A busca por poder, influência ou identificação com um grupo político pode comprometer o testemunho do evangelho. 

Neutralização partidária 

A seguir, apresento sete razões para a neutralidade partidária da igreja: 

1. Argumento teológico: o reino de Deus é eterno, os partidos são passageiros. A teologia cristã enfatiza que o reino de Deus não é deste mundo (João 18:36). Quando cristãos se tornam militantes partidários, correm o risco de apagar a fronteira entre o eterno e o temporário. A igreja não pode confundir a cruz de Cristo com bandeira partidária, pois uma é eterna e redentora, a outra é transitória e falível. 

2. Argumento filosófico: a militância imposta anula a consciência cristã. A filosofia cristã, desde os tempos antigos até pensadores contemporâneos, defende a centralidade da consciência individual e da liberdade de pensamento. Ao se envolverem em militância partidária, líderes e membros da igreja podem impor visões ideológicas sobre a congregação, suprimindo o diálogo, a reflexão e a liberdade de consciência que são fundamentais para o amadurecimento cristão. A fé se fortalece na liberdade. 

3. Argumento histórico: o comprometimento com partidos deforma a missão da igrejaA história mostra que a associação direta entre igreja e partidos políticos costuma gerar sérias distorções da fé cristã, como ocorreu em períodos em que o cristianismo se aliou ao poder estatal para perseguir dissidentes ou impor doutrinas. Esse tipo de envolvimento político compromete o testemunho da igreja, reduzindo sua autoridade moral e espiritual diante da sociedade. Quando a igreja se casa com o poder político, ela se divorcia do evangelho. 

4. Argumento eclesiológico: a igreja deve ser casa de comunhão, não trincheira ideológica. A pluralidade política entre os fiéis exige que a igreja se mantenha como um espaço de acolhimento e unidade. Quando representantes da igreja assumem bandeiras partidárias, inevitavelmente criam divisões internas e afastam membros que pensam diferente, contrariando o chamado à comunhão e ao amor mútuo. Quando um partido entra pela porta da frente da igreja, muitos irmãos saem pela dos fundos. 

5. Argumento missional: o foco da igreja é Cristo, não os candidatos. O testemunho cristão deve apontar para Cristo, não para partidos ou líderes humanos. Quando a igreja é associada a um grupo político específico, ela corre o risco de ser instrumentalizada e sua mensagem confundida com os interesses de poder terreno. O compromisso cristão deve ser com a justiça, a verdade e o amor, não com ideologias passageiras e, muitas vezes, contraditórias com os valores do evangelho. Se a voz da igreja ecoa slogans em vez do evangelho, ela já perdeu o púlpito para o palanque. 

6. Argumento pastoral: a missão da igreja é reconciliar, não polarizar. A política partidária, por sua natureza, divide, polariza e antagoniza. Por sua vez, o evangelho reconcilia as pessoas com Deus e umas com as outras (2 Coríntios 5:18-20). A igreja deve buscar caminhos de paz, reconciliação e serviço, sendo um refúgio espiritual acima das disputas ideológicas. Ao evitar a militância partidária, os cristãos preservam sua identidade e relevância como mensageiros do reino eterno. Onde a igreja toma partido, ela perde sua vocação de ser ponte entre os opostos. 

7. Argumento profético: envolvimento partidário tende a comprometer a mensagem profética da igreja. O papel profético exige independência crítica para denunciar injustiças em qualquer governo ou sistema. Militância partidária mina essa autoridade, pois a igreja passa a ser vista como cúmplice de um lado e inimiga do outro. Uma igreja partidária não profetiza; faz campanha. 

No turbilhão das crises e paixões partidárias atuais, em que todos parecem pressionados a escolher um lado, a igreja enfrenta a tentação de confundir sua missão com militância partidária, abraçando bandeiras que não lhe pertencem. É preciso, porém, resistir. Cristãos podem atuar na política com coragem e discernimento, e a própria igreja tem o dever de confrontar injustiças e abusos de poder. Ainda assim, ela é chamada a eleger o horizonte eterno, em vez de se prender à luta passageira. Sua força não reside em votos, partidos ou alianças efêmeras, mas na capacidade de irradiar luz, verdade e esperança que nenhum partido jamais poderá oferecer ou monopolizar. 


Marcos De Benedicto é teólogo e editor emérito da Casa Publicadora Brasileira e autor do livro Política: O que Você Precisa Saber