Notícias Adventistas

Coluna | Rodrigo Silva

Elihana bat Gael: uma mulher de força num mundo patriarcal

Embora seu nome não esteja na Bíblia, um achado ligado a ela ajuda a compreender como a mulher era vista na cultura do Oriente Médio.


  • Compartilhar:

Na antiguidade, mulheres também buscavam seu espaço nas decisões e nos rumos da sociedade (Foto: Shutterstock)

Sei que o título deste artigo deve ter levado muitos leitores a pensar que contarei a história de alguma Elihana, que superou o machismo de uma sociedade para se firmar como mulher. Talvez alguns até pensem que se trata de uma história moderna (do século XIX para cá) e até busquem na Internet informações sobre tudo o que for possível acerca dela. Também estou consciente de que o tema do feminismo é bastante espinhoso e atrai muitas críticas de todos os lados, principalmente se o autor for um homem cuja teologia se pauta mais pelas linhas conservadoras que as liberais.

Em primeiro lugar, não adianta procurar por imagens de Elihana. Essa mulher, descendente de Abraão, deve ter vivido há pelo menos 2.600 anos! Há quem diga que seria mais velha que isso. É a primeira vez em mais de 300 anos de escavações no Oriente Médio que seu nome “reapareceu” ou “foi revelado” num pequeno objeto sem o qual nunca saberíamos de sua existência: trata-se de um selo composto de pedras semipreciosas e datado do período do I Templo. Alguns pensam que seria dos dias de Jeoaquim, rei de Judá – na época em que Nabucodonosor cercou Jerusalém. Outros são da opinião de que poderia ser de 100 ou 200 anos antes.

Leia também:

O local do achado foi o Givati Parking Lot, um antigo estacionamento público perto da Porta do Lixo, em Jerusalém, que há quase uma década foi transformado num sítio arqueológico com promessas de revelar muitas coisas interessantes da história antiga de Israel. De fato, os trabalhos locais não decepcionaram. Estive lá em julho deste ano explicando o sítio para um grupo de brasileiros.

Processo meticuloso

Para benefício de quem não conhece o procedimento de uma escavação, as ruínas da antiguidade no Oriente Médio se acumulam uma sobre a outra como se fossem camadas de um bolo de aniversário. Guerras, terremotos, abandono por diferentes causas e a própria ação do tempo fazem com que um antigo assentamento (que vai desde uma vila até uma grande cidade) se torne um monte de ruínas.

Povos que chegam depois disso reconstroem o lugar, mas sem aquelas técnicas modernas de retirada de entulho ou eventuais detritos que estejam ali depositados. Lembre-se: eles não tinham tratores, retroescavadeiras ou caminhões. Portanto, embora métodos de terraplenagem já fossem utilizados desde os tempos babilônicos e egípcios, o nivelamento de um terreno era bem menos sofisticado que os vistos hoje em dia, e isso fazia com que o nível do solo subisse a cada nova reocupação de um assentamento. Um morador de Jerusalém dos tempos de Jesus não ficava preocupado em saber quantos restos de construção anterior haveria debaixo do piso de sua casa.

Sendo assim, há lugares em que o nível atual do chão em que pisamos está metros acima daquele que foi utilizado nos tempos de Cristo, por exemplo. Nisto você pode ver quão ilusória é essa história de “via dolorosa” dentro da cidade velha de Jerusalém. Jesus nunca pisou naquelas ruelas turísticas. A Jerusalém de Jesus está muito abaixo disso.

Selos: autoridade e poder

Agora que você já sabe como funciona o processo, já está pronto para entender que o primeiro dilema do arqueólogo é destruir antiguidade para achar antiguidade, pois como os restos civilizatórios estão depositados em camadas, o que está em cima é mais recente e o que está em baixo é mais antigo. Por isso demora-se tanto no processo e só neste ano o time de escavadores do Givati Parking Lot chegou ao nível do primeiro templo, isto é, da camada que contém o contexto arqueológico da época em que o Templo de Salomão ainda funcionava em Jerusalém. Foi neste contexto que o selo de Elihana foi encontrado.

Quando um objeto assim é encontrado numa escavação arqueológico, duas tentações passam pela mente de quem analisa o artefato – e ambas são perigosas. A primeira é descartar qualquer análise mais demorada sobre o objeto, achando que ele seria muito pouco para nos dizer algo real acerca do passado. A segunda é construir detalhes demais de como seria o seu contexto, indo além daquilo que o achado permite teorizar.

Evitando, portanto, ambos os extremos, posso dizer algumas coisas sobre esse objeto tão singular que mede aproximadamente o tamanho do meu polegar. A primeira delas é que ele ilustra a importância de um selo nos tempos antigos. Biblicamente falando, um selo tem o valor de ilustrar uma questão espiritual – a propriedade de Deus. Por isso, o povo de Deus é selado em sua fronte (Ezequiel 9, Apocalipse 7). No Apocalipse, os sete selos têm uma simbologia muito especial no cronograma profético da história cristã.

Na antiguidade, os selos eram uma espécie de carimbo com o qual imprimia-se, em alto relevo, sobre um pedaço de cerâmica que servia de lacre para fechar cartas e documentos importantes. Havia também o caso de um rei ou governador selar, isto é, fixar seu emblema em potes de comida armazenada que seria distribuída ao povo em caso de necessidade extrema.

O local do achado deste selo de Elihana era um edifício administrativo em uso na época dos Macabeus – e talvez até antes disso (as próximas escavações revelarão novos dados). Outros selos também foram descobertos ali, o que reforça o fato de que os proprietários destes objetos eram cidadãos da elite de Jerusalém.

Um selo geralmente traz o nome do proprietário, sua filiação e, menos frequentemente, seu oficio no reino. Já encontraram, por exemplo, um selo que dizia “Yehukal ben Selemyahu”, isto é, Jucal, filho de Selemias, e outro que dizia “Gedalyahu ben Pasur”, Gedalias, filho de Pasur. Em ambos os casos, a expressão “filho de...” equivalia ao sobrenome do indivíduo, e estes dois mencionados figuram na Bíblia entre os opositores do profeta Jeremias, que tramaram sua prisão (Jeremias 38:1).

Um outro selo, curiosamente anônimo, foi encontrado pela doutora Shlomit Weksler-Bdolah e trazia apenas a função do sujeito, que era a de “governador da cidade [de Jerusalém]”. Essa expressão aparece em 2 Reis 23:8, quando Josué governava a capital nos dias do rei Ezequias – e 2 Crônicas 34:8, onde Maaséias era governador da cidade nos dias do rei Josias.

Protagonismo

E quanto a Elihana? Sua função não é revelada, mas ela certamente tinha certo prestígio oficial, senão seu selo não estaria “armazenado” num edifício público da antiga cidade de Jerusalém. Selos geralmente ficavam o tempo todo com o dono e, após sua morte, eram “arquivados” nestes setores públicos para que não caíssem em mãos erradas, pois uma impressão indevida feita a partir de um selo pessoal poderia resultar numa falsificação de assinatura num documento importante.

Note que, diferente dos homens da época, cujo sobrenome se dava mais comumente pela ancestralidade (Jesus, filho de Davi; Simão Bar Jonas),  o sobrenome de uma mulher se dava mais pela referência ao seu marido (Maria, mulher de Clopas; Joana, mulher de Cuza). Havia outros casos, é claro, como Maria Madalena, que era conhecida pela cidade de sua procedência, ou Lídia, que era conhecida pela sua profissão como vendedora de Púrpura. Não era, no entanto, a forma mais comum.

Neste caso específico, o selo encontrado traz curiosamente o título “Elihana bat Gael”, Eliana, filha de Gael. Ou seja, aponta para sua filiação e não para o nome de seu marido. Caso se trate de uma mulher casada – e este certamente era o status de uma mulher bem-sucedida na época – chama-me a atenção a forma peculiar de seu sobrenome dado a partir de sua ancestralidade – assim como Jesus, que era solenemente chamado “filho [i.e. descendente] de Davi”.

Selo com a inscrição que relaciona Eliana à sua família patriarcal (Foto: Divulgação)

Reconheço que selos pertencentes a mulheres eram extremamente raros nos tempos bíblicos. A fração do que encontramos é muito pequena em relação aos selos de propriedade masculina. Portanto, seria um anacronismo de minha parte fazer uma equiparação entre o papel da mulher na sociedade moderna e nos tempos Bíblicos. É claro que naquele período elas geralmente estariam num status econômico inferior aos homens. Não quero, de modo algum, dizer que isso é o ideal, muito menos que a Bíblia sanciona algo que, na verdade, está apenas “descrevendo”.

Por outro lado, posso também dizer que é caricatural aquela ideia que muitos fazem da sociedade judaica, dita “patriarcal”, como sendo extremamente tendenciosa em relação aos homens ou simplesmente “machista”, sem dar às mulheres qualquer oportunidade de exercer sua cidadania. Exemplos como o do selo de Elihana desconstroem esse cenário imaginário e preconceituoso.

Mesmo casada, ela certamente administrava os bens de família, fazia negócios e dispunha de autoridade política mesmo que não ocupasse cargos públicos. E não precisamos ir longe para encontrar paralelos bíblicos que ilustrem esse comportamento. Veja o caso de Débora, reconhecida entre os juízes de Israel; Ester, heroína nacional do judaísmo; Sara, Rebeca, Raquel e Lia, reverenciadas desde as mais antigas tradições como as grandes matriarcas do povo hebreu.

Liderança no lar e nos negócios

O livro de Provérbios 31:10-31 fala das características da mulher virtuosa, ou esposa ideal, e entre suas tarefas está a administração das servas do lar; o exame, decisão e negociação de um campo; a compra de mercadorias; o auxilio aos necessitados. Esse quadro não apenas está de acordo com o selo encontrado – demonstrando que o cenário de Provérbios 31 é histórico é não simplesmente poético –  como também esclarece que há muitas distorções preconceituosas em relação ao papel da mulher na sociedade dos tempos bíblicos.

Um documento encontrado no deserto da Judeia e datado dos tempos do Novo Testamento indica, entre outras coisas, uma importante transação comercial liderada por uma mulher chamada Babatha bat Shimon, que era proprietária legal de muitas terras e comerciante por excelência. Mesmo sendo poucos os exemplos de participação feminina que eu poderia oferecer, ainda assim é notório que está longe da realidade dizer que naquele tempo “mulher não tinha vez”.

O nome Eliana não aparece diretamente na Bíblia Sagrada, mas pode ter alguma relação com ela no sentido de contextualizar suas histórias. Alguns pensam que esse nome deriva do acadiano via o hebraico, que seria a junção de dois vocábulos e um pronome possessivo:  EL (Deus) + I (meu) + ANAH (respondeu) = Meu Deus Respondeu-me.  Em Gênesis 33:20, Jacó compra um terreno e ergue um altar sobre o qual pôs o nome “El ELOHE ISRAEL” – Deus, o Deus de Israel. Antes disso, em Gênesis 23:14, Abraão comprara um terreno após ter a aprovação de Efron, que lhe respondeu conforme seu pedido, isto é, lhe atendeu  – “anah”, em hebraico.

O nome Elihana, portanto, me faz lembrar das respostas positivas que recebemos em nossas solicitações, acentuando que as melhores delas são as que vêm de Deus, que atente a todos quantos sinceramente buscam o seu auxílio, quer sejam homens ou mulheres, pois o que importa – mais do que o sexo – é um coração sincero e desejoso de cumprir a vontade de Deus.

Rodrigo Silva

Rodrigo Silva

Evidências de Deus

Uma busca pela verdade nas páginas da história.

Teólogo pós-graduado em Filosofia, é mestre em Teologia Histórica e especialista em Arqueologia pela Universidade Hebraica de Jerusalém. Doutor em Arqueologia Clássica pela Universidade de São Paulo (USP), é professor do Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp), curador do museu arqueológico Paulo Bork, e apresentador do programa Evidências, da TV Novo Tempo.