Notícias Adventistas

Coluna | Juan Martin

Liberdade religiosa ou discriminação? O caso de Masterpiece Cakeshop

O conflito de direitos entre a não discriminação e a liberdade religiosa e de liberdade de expressão é um dos mais complexos de serem resolvidos.


  • Compartilhar:

O conflito de direitos entre a não discriminação e a liberdade religiosa e de liberdade de expressão é um dos mais complexos de serem resolvidos. (Foto: Shutterstock)

Durante os preparativos para sua festa de casamento, um casal foi encomendar o bolo. Escolheram a confeitaria Masterpiece Cakeshop, no Colorado, EUA. Porém, o confeiteiro e dono da loja, Jack Phillips, se negou a receber a encomenda. O fato é que o casal era homossexual e o senhor Phillips sentiu que participar de um casamento entre pessoas do mesmo sexo ia contra suas convicções religiosas. De acordo com as crenças de Phillips, o casamento deve ser realizado entre um homem e uma mulher.

Sentindo-se ofendido e discriminado, o casal denunciou o confeiteiro para a Comissão de Direitos Civis do Colorado[1]. Este é o escritório administrativo encarregado de zelar pelo cumprimento da legislação antidiscriminatória nos empreendimentos abertos ao público. Essa legislação diz que não pode ser negada a oferta de bens e serviços a alguém devido à sua raça, religião ou orientação sexual. Por conseguinte, e depois de um processo investigativo, a Comissão aceitou a queixa do casal e penalizou o confeiteiro.

O caso diante da Comissão de Direitos Civis

À primeira vista, a argumentação da Comissão parece impecável. O confeiteiro havia se recusado a vender o bolo precisamente porque o pedido era para um casamento de homossexuais. Em outras palavras, ele estava fazendo discriminação na oferta de seus serviços. Porém, o senhor Phillips também tinha um bom argumento: obrigá-lo a vender o bolo a um casal homossexual seria obrigá-lo a agir contra suas convicções mais íntimas. Os direitos de liberdade religiosa e de liberdade de expressão o protegem desse tipo de interferências do Estado.

Então o senhor Phillips apelou dessa decisão da Comissão aos tribunais. Ele perdeu em todas as instâncias, até chegar à Suprema Corte. Finalmente, coube à Suprema Corte decidir se deve prevalecer o direito de as pessoas não serem discriminadas (neste caso, por sua condição sexual) ou o direito de as pessoas agirem de acordo com suas próprias convicções íntimas (neste caso, religiosas).

A esta altura é necessário esclarecer um detalhe: o senhor Phillips não estava se recusando simplesmente a vender um bolo ao casal homossexual, mas se recusava a aceitar preparar um bolo especialmente projetado para esse casamento. Algo que ele considera uma criação, uma forma de expressão artística. Foi exatamente nisso que a defesa se baseou; não tanto no direito de liberdade religiosa, mas no direito de liberdade de expressão, um direito que nos EUA é quase sagrado (enquanto a liberdade religiosa é cada vez mais discutida).

A decisão da Suprema Corte

O que deveria prevalecer, então, de acordo com a Suprema Corte? O direito de não ser discriminado ou o direito de liberdade religiosa e de liberdade de expressão? A sentença não dá uma resposta definitiva. Embora a decisão da Suprema Corte tenha favorecido Phillips[2](por sete votos a dois), não o fez porque tivesse razão, mas com base no fato de que ele fora injustamente penalizado pela Comissão de Direitos Civis. De acordo com a Suprema Corte, esse organismo não ofereceu um tratamento imparcial. Pelo contrário, agiu de forma imprópria ao persegui-lo por suas convicções religiosas. Esse comportamento é “inconsistente com a obrigação estatal de neutralidade em questões religiosas”.

Em outras palavras, foi o Phillips que acabou sendo discriminado (pelo Estado). Aqui a Suprema Corte lançou uma mensagem de advertência: embora alguém não esteja de acordo com as convicções religiosas da outra pessoa, embora estas lhe pareçam antiquadas ou erradas, isso não pode ser fundamento para tratá-lo como cidadão de segunda classe, para persegui-lo ou discriminá-lo. Isso, esclarece o tribunal, não equivale a dar passe livre para a discriminação com base nas próprias convicções religiosas. Deve-se examinar, caso por caso, para resolver cada situação.

Fim da história?

Em minha opinião, o conflito de direitos entre a não discriminação e a liberdade religiosa e de liberdade de expressão é um dos mais complexos de serem resolvidos e o que mais provocará conflitos em um futuro próximo.

Dito isso, também se deve esclarecer que em muitos casos as partes não parecem interessadas na busca de uma solução razoável, antes, querem impor sua vontade sobre o outro. O casal dessa história se casou em Massachussets, mas encomendou o bolo no Colorado, (a 3.000 km de distância, onde o casamento homossexual não era legal naquela época). Eles fizerem isso para provocar o conflito? Não temos como saber. Mas o fato de que no mesmo dia em que a sentença da Suprema Corte tornou-se conhecida, um advogado transexual tenha encomendado um bolo da Masterpiece Cakeshop para celebrar sua mudança de sexo, faz com que se suspeite até do mais ingênuo. Como é de imaginar, o senhor Phillips se recusou e agora há uma nova ação em andamento[3].

A função dos tribunais, eu creio, não é declarar ganhadores e perdedores na “batalha cultural”, mas encontrar um equilíbrio razoável para os direitos em conflito. Os dois direitos, o da liberdade religiosa e o da não discriminação, devem ser protegidos. Na medida do possível, o ideal é encontrar formas que permitam que ambos sejam resguardados. Partindo desse ponto de vista, cabe a pergunta: O casal não poderia se casar e desfrutar de seu casamento com um bolo comprado em outro lugar? Parece que sim. Admitindo que houvesse uma restrição a seu direito de não serem discriminados, parece que essa restrição não é absoluta. Por outro lado, se o Phillips for obrigado a fazer o bolo, seu direito de liberdade religiosa e de expressão se vê absolutamente truncados. Ou seja, para alcançar um objetivo lícito (a não discriminação com base na orientação sexual) o direito do outro é completamente sacrificado.

Isso não deve ser necessariamente um jogo de soma zero, onde para que um ganhe tudo o outro tem que perder tudo. Tenho a esperança de que os juízes serão capazes de encontrar as melhores formas de proteger ambos os direitos.


Referências:

[1] https://www.colorado.gov/pacific/dora/civil-rights/commission

[2] https://www.supremecourt.gov/opinions/17pdf/16-111diff2_e1pf.pdf 

[3] https://www.denverpost.com/2018/08/15/masterpiece-cakeshop-hickenlooper-lawsuit/

Juan Martin

Juan Martin

Fé, Razão e Liberdade

Um enfoque bíblico-cristão sobre liberdade de consciência

É advogado, mestre em Direito Empresarial e Doutor em Direito Público Global pela Universidade Autônoma de Barcelona, na Espanha. Possui pós-doutorado no Centro de Direito Constitucional Comparativo e Religião da Universidade de Lucerna, na Suíça. Autor de inúmeros artigos e capítulos de livros e palestrante sobre questões de liberdade religiosa e relações Igreja - Estado, é diretor do Centro de Estudos sobre Direito e Religião da Universidade Adventista del Plata, na Argentina.