Uma Igreja contra a fome em um futuro pós-pandemia
Como o povo de Deus pode fazer a diferença num mundo faminto, não apenas espiritualmente
A fome é a expressão biológica de males sociológicos, ensinou o médico e geógrafo recifense Josué de Castro, autor de livros que precisam se tornar conhecidos, como “Geografia da Fome”, por exemplo. Isso é ainda mais necessário dado o contexto atual, em que estamos diante dos desafios de um futuro pós-pandemia. Com a covid-19, os males sociológicos que resultam em fome transformam esta realidade de desnutrição e insegurança alimentar em um dos grandes problemas globais, à medida em que o mundo vai coexistindo com o vírus e reduzindo o seu impacto.
O relatório “O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional do Mundo”, apresentado em julho deste ano pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), mostra o tamanho do problema. Em 2020, mais de 2,3 bilhões de pessoas não tiveram acesso a alimentação adequada durante o ano inteiro. Isto representa cerca de 30% da população global. Crianças são as principais vítimas, inclusive recém-nascidas ou com pouco tempo de vida. São quase 150 milhões de menores de 5 anos sem ter o que comer. Um dos motivos: quase um terço das mulheres em idade reprodutiva sofre de anemia.
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No Brasil, os dados do “Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar em Contexto de Covid” revelaram que mais de 55% da população brasileira sofreu alguma ameaça ao direito de se alimentar com dignidade, previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ainda mais grave: 19 milhões estão em situação crítica pela falta crônica de acesso a alimentação. Para estes brasileiros, a fome é a realidade de todo dia.
Os dados exigem reflexão e ação. Organizações no mundo todo se mobilizam para colocar comida na mesa já. No Brasil, uma das mobilizações foi o programa “Tem Gente com Fome”, que juntou entidades como Anistia Internacional e Oxfam para apoiar mais de 220 mil famílias brasileiras vulneráveis.
A missão do povo de Deus
As igrejas também se destacam na mobilização global. A Christian Aid, iniciativa mundial que envolve igrejas e organizações, quer alimentar mais de 41 milhões de pessoas, em 43 países, que estão à beira da fome. A Global Hunger Relief, iniciativa multinacional batista, vai na mesa direção.
E quanto aos adventistas do sétimo dia? A Igreja fez um esforço para apoiar mais de 2 milhões de pessoas em vulnerabilidade no Brasil, durante a pandemia. Os dados da Ação Solidária Adventista (ASA) informaram que mais de 1,6 milhão de pessoas receberam ajuda por meio de doação superior a 4 milhões de alimentos.
O trabalho continua incansável. Envolve instituições que se unem para integrar beneficência social ao evangelismo, como aconteceu na campanha missionária da Semana Santa em Eunápolis, no sul da Bahia, quando mais de 2,6 mil famílias foram assistidas com alimentos. Ou ainda o esforço fora do comum de membros, como a voluntária Edleuza Santos, da Ação Solidária Adventista de Itabuna, cidade baiana no sul do Estado, que chegou a distribuir marmitas, todos os meses, para cerca de 100 pessoas em situação de rua no município.
São esforços que precisam ser mencionados e reconhecidos. E que apontam uma visão extraordinária para a Igreja: se houver intencionalidade na ação em favor da segurança alimentar, do aproveitamento dos alimentos e da nutrição saudável, neste futuro pós-pandemia, o papel dos adventistas vai permitir à Igreja ampliar o alcance de sua consistência missionária nas comunidades.
Um programa que serviria como inspiração é o Nourish The Future (Nutrir o Futuro), uma ação que responde especialmente aos desafios da nutrição infantil. O pilar essencial da mudança envolve melhorar a nutrição por meio dos sistemas de saúde, com a ajuda da Universidade Johns Hopkins. A instituição de ensino identificou quatro intervenções possíveis nos sistemas de saúde que seriam essenciais para os primeiro mil dias na vida de uma criança. Isso inclui fornecer um kit especial de 15 vitaminas e minerais pré-natais para mulheres grávidas em situação de vulnerabilidade, incentivar, treinar e apoiar as mães para uma amamentação exclusiva durante os primeiros seis meses, oferecer vitamina A de baixo custo duas vezes por ano, para crianças de seis a 59 meses, para minimizar os riscos de cegueira e mortalidade; e disponibilizar comida nutricional densa para crianças em estado avançado de subnutrição.
Para explorar ideias assim, a Igreja precisaria envolver de forma mais estratégica voluntários das áreas de saúde e nutrição em torno da Ação Solidária Adventista (ASA), fortalecendo o departamento e permitindo-lhe ter autonomia para aprimorar iniciativas de segurança alimentar desenvolvidas pelos adventistas, como o Mutirão de Natal. Para o mundo vulnerável da pós-pandemia, mapear as comunidades mais fragilizadas em torno dos templos, estabelecer contatos com governos, universidades, escolas e imprensa, conversar com conselhos locais de segurança alimentar e de crianças e ampliar a quantidade de voluntários em torno do mutirão, que poderia durar o ano inteiro, daria a chance de ir além da entrega de cestas básicas, que é fundamental como ação de emergência, para planejar acolhimento e capacitação de mulheres e famílias com o objetivo de superar a fragilidade alimentar e nutricional.
É possível fazer a diferença
Particularmente, acredito que a Igreja pode ser um agente importante na resposta a este problema. Acredito porque ela é organizada e tem capacidade de mobilização. Com um plano intencional e estrategicamente planejado, capaz de gerar este engajamento, o resultado seria, sem dúvida, satisfatório. Acredito porque me inspira a visão de Ellen White a respeito, ao afirmar que a verdadeira caridade ajuda as pessoas a terem autonomia. Ela escreveu: “se alguém vem à nossa porta e pede alimento, não o devemos mandar embora com fome; sua pobreza pode ser o resultado de um infortúnio. Mas a verdadeira beneficência significa mais que simples dádivas. Importa num real interesse no bem-estar dos outros” (A Ciência do Bom Viver, 195). Um apelo, portanto, para ações mais consistentes, duradouras e intencionais.
Por fim, acredito porque aprendi que missão combina com compaixão, resultado da reflexão a partir de um dos maiores teólogos protestantes da história, o pastor John Stott, analista relevante do cristianismo e seu impacto na cultura. Para ele, ao buscar ganhar outras pessoas para Cristo, o objetivo deveria ser torná-las semelhantes a nós, desde que cada um de nós nos tornássemos semelhantes a Cristo. Isso resultaria em impacto direto nas ações missionárias. “Se elas querem se tornar um conosco em convicção e experiência cristãs, devemos primeiro nos tornar um com elas em compaixão cristã”, concluiu. A compaixão abrindo caminho para a missão. Parece um caminho extraordinário para o futuro da evangelização pós-pandemia.