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Coluna | Edson Nunes

Descanso real – Parte 1

O descanso sabático está relacionado à imitação do ato do criador.


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O sábado é destino à conexão total com o criador  (Foto: Shutterstock)

Como foi visto em um texto anterior, a estrutura de Gênesis 1:3 a 31 aponta para uma unidade coesa entre os seis dias, que formariam um bloco indivisível. Essa unidade literária é quebrada no início de Gênesis 2, quando o autor não utiliza nenhum refrão anterior. Ainda que retome alguns verbos (“criar”, “fazer”, “abençoar”) e a expressão “céus e terra”, há uma clara cisão textual que marca o sétimo dia:

“E terminou os céus e a terra e todo seu exército.

E terminou Deus no dia sétimo o seu trabalho que tinha feito

E descansou no sétimo dia de todo o seu trabalho que tinha feito

E abençoou Deus o dia sétimo e o santificou

Porque nele descansou de todo o seu trabalho que tinha criado Deus para fazer”[i]

Durante todo o relato, as ações de Deus são dirigidas à criação. Há sempre algo acontecendo que envolve os três elementos de Gênesis 1:2 – terra desértica e sem vida; escuridão; águas. Aqui, em Gênesis 2:1-3, entretanto, a ação não possui ligação com o que é criado, pois a criação está terminada. A ação está relacionada ao próprio Deus. No sétimo dia, diferente dos outros seis, Ele faz algo em relação a si mesmo: descansa.

Como se lê acima, o sábado é abençoado e santificado em virtude da ação de Deus de descansar. O verbo usado aqui, שׁבת (šbt), tem seu significado relacionado à ação de cessar alguma atividade. Essa cessação, no entanto, não implica em uma simples pausa momentânea, mas no fim de todas as ações relacionadas a cessação: “A referência é consistentemente à cessação de uma atividade prévia, ou o fim de um processo que chegou à sua conclusão e que não foi meramente interrompido temporariamente”, esclarece E. Haag na página 385 do Theological Dictionary of the Old Testament.

No contexto de Gênesis 1:1-31, Gênesis 2:1-3 evoca exatamente o fim completo de uma ação, a ação da criação. O verbo usado, šbt, visa exatamente acentuar a sensação para o leitor de que houve uma atividade específica. Assim, além da forma literária, o uso do verbo indica rompimento.

A cessação da atividade é seguida pelas ações de abençoar e santificar, ambas em troncos de ação intensiva no hebraico. O fim da atividade de criar é marcado por um dia inteiro que é em si abençoado e santificado. Portanto, embora o sétimo dia esteja diretamente ligado à obra anterior a ele por indicar exatamente a cessação dela, ele é diferente em essência por indicar o fim.

Entretanto, em Gênesis 8:22, por exemplo, Deus indica que algumas coisas não mais cessariam em momento algum, usando o mesmo verbo šbt. Mesmo em textos onde šbt é usado para falar das festas ligadas à colheita ou das festas solenes, como a atividade não termina definitivamente - apenas há o fechamento de um ciclo e início de outro -, talvez o significado de šbt inclua um outro elemento: o da celebração. O ciclo termina e é celebrado e então um novo ciclo começa. שׁבת (šbt) é, portanto, o fim e a celebração desse fim, ao mesmo tempo marcando que haverá um novo começo – sétimo dia é o fim do ciclo criativo e o indicativo de que haverá um novo começo.

Relação entre textos

Há, ainda, duas questões interessantes e necessárias em torno desse “descansar” de Gênesis 2:1-3. A primeira é que a ação é somente divina, e a segunda é que embora o entendimento do verbo esteja relacionado à cessação da obra da criação e à celebração da mesma, o que de fato acontece nesse dia, o sétimo? Em Gênesis, as questões em torno do sábado não são discutidas e é somente em Êxodo que elas parecem ser explicadas.

Êxodo 20:8-11 apresenta um caminho que ajuda a facilitar o entendimento das questões colocadas. Nesse primeiro momento, apenas a primeira ideia será analisada. Vejamos o texto:

(A) “Lembra-te do dia de sábado para o santificares;

(B) Seis dias trabalharás e farás todo teu trabalho;

(C) Mas o sétimo dia é sábado para o YHWH, teu Deus; não farás nenhum trabalho: nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu servo nem tua serva, nem teu gado, nem o teu estrangeiro que está nas tuas portas;

 

(B’) Porquê em seis dias YHWH fez os céus, a terra, o mar e tudo que está neles;

(C’) E Ele descansou no sétimo dia;

(A’) Portanto YHWH abençoou o dia de sábado e o santificou[ii]

Em negrito está o verbo santificar, que aparece no início do quarto mandamento e no final. Primeiramente é dito que quem deve santificar o sábado é o homem[iii], e na última parte do mandamento quem santifica (ou santificou) o sábado é Deus. Novamente, a relação do imitatio Dei (imitação de Deus) reaparece: o homem faz porque Deus fez (ou faz). A construção textual do mandamento, inclusive, proporciona uma clara visão disso. A primeira parte, Êxodo 20:8-10, trata exclusivamente de ações do homem: o homem santifica (v. 8), faz (v. 9) e não faz (v. 10). Já a segunda parte (Exôdo 20:11) é toda relativa às ações divinas: Ele fez, Ele descansou e Ele santificou. Basicamente, a ação humana é resultado da ação divina.

A primeira questão levantada pode finalmente ser respondida. Apesar de Gênesis 2:1-3 apresentar o foco do sábado somente na ação divina, o princípio do imitatio Dei, tão presente em Gênesis 1 e 2 (entenda mais aqui e aqui) é trazido à tona em Êxodo 20:8-11. Ao mencionar a criação como base do sábado do sétimo dia, Moisés estabelece que o que Ele faz é, em si, um convite para que eu faça.

A benção do sábado e sua santidade, no entanto, estarão sempre conectadas primariamente à ação divina. A minha participação nessa benção e nessa santificação se dá se o obedeço, imitando-O.


Bibliografia

CASSUTO, U. A Commentary on the Book of Genesis: from Adam to Noah. Jerusalem: Magnes Press, 1959.

CLINES, D. J. A. (ed.). The Dictionary of Classical Hebrew. Sheffield: Sheffield Academic Press; Sheffield Phoenix Press, 2011.

DOUKHAN, J. B. Genesis. Nampa: Pacific Press; Review and Herald, 2016. (Seventh-Day Adventist International Bible Commentary, 1).

EVEN-SHOSHAN, A. A New Concordance of the Old Testament: using the Hebrew and Aramaic text. Jerusalem: Kiryat Sefer Publishing House, 1989.

HAAG, E. “שׁבת (šbt)”. In: BOTTERWECK, G. J; RINGGREN, H; FABRY, H. J. (eds.). Theological Dictionary of the Old Testament. 15 vols. Grand Rapids, MI: William Eerdmans Publishing Company, 2006.

KÖEHLER, L.; BAUMGARTNER, W. The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament. Study Edition. 2 vols. Leiden: Brill, 2001.

LARONDELLE, Hans K. Nosso Criador Redentor: introdução à Teologia Bíblica da Aliança. Engenheiro Coelho: Unaspress, Terceira Margem do Rio, 2016.

TURNER, L. A.  Anúncios de Enredo em Gênesis. Engenheiro Coelho: Unaspress; Terceira Margem do Rio, 2017.


Notas

[i] Tradução e versificação própria.

[ii] As marcações e a disposição espacial não fazem parte do texto massorético, mas foram acrescentadas para ajudar no entendimento.

[iii] Curiosamente, todo o discurso é construído em segunda pessoa singular, ou seja, o endereçado é o “tu”, o mais pessoal possível em qualquer fala.

Edson Nunes

Edson Nunes

Texto e Contexto

Um convite mensal para estudo do texto bíblico e consequente maravilhamento com ele.

Graduado em Teologia e Letras, é mestre e doutor em Letras (Estudos Judaicos) pela Universidade de São Paulo (USP). Foi pastor nas comunidades Beth B’nei Tsion (Templo Judaico-Adventista), Nova Semente e Homechurch de Perdizes. Hoje é professor da Faculdade de Teologia no Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp) e coautor do site terceiramargemdorio.org