Imagem e semelhança (parte 2)
O homem e a mulher foram criados à imagem do próprio Deus
Entre Gênesis 1:26 e 28, que tratam dessa imagem e semelhança, há um pequeno poema, em Gênesis 1:27, que é interessante por sua construção:
E criou Deus o homem na sua imagem
Na imagem de Deus criou ele
Macho e fêmea criou eles.[1]
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O verbo criar é repetido três vezes, e o nome de Deus, duas vezes, sendo o sujeito do verbo em todas as três vezes em que este ocorre (na última linha, de maneira implícita). A expressão “na imagem” é repetida duas vezes. Por fim, em negrito estão as referências àquilo que Deus cria: o ser humano, que depois é mencionado por sinal do objeto direto mais sufixo pronominal no singular, na segunda linha, e sinal do objeto direto mais sufixo pronominal no plural, na terceira linha, em hebraico. Tudo isto para dizer que o ser humano é imagem e semelhança de Deus, que o ser humano é macho e fêmea e que ambos (juntos/separados) são imagem e semelhança de Deus.
Em Gênesis 2, a criação do ser humano segue dois estágios: primeiro do homem, depois da mulher. O homem é criado (Gênesis 2:7) do pó da terra e recebe um sopro de vida. O nome do homem está conectado diretamente à terra – ʾādām (homem) ʾădāmâ (terra) – sendo “terra” um substantivo feminino, e “homem”, um substantivo masculino, possivelmente da mesma raiz. Os animais, curiosamente, também são criados do pó da terra (Gênesis 2:19), e a ação da criação de ambos, homem e animais, é descrita com o mesmo verbo – formar/moldar (yṣr). O homem, que veio da terra recebe como missão/função cuidar dela (Gênesis 2:15). Como Deus plantou e preparou o jardim, o homem deve trabalhar nele (imitatio Dei).
Na parte final de Gênesis 2, a criação da mulher é apresentada de maneira curiosa. Deus constata que o homem necessitava de uma ajudadora (Gênesis 2:18). Ele então a forma de uma costela do homem. O verbo usado para esta operação de feitura da mulher é “construir” (bnh), bem mais elaborado do que o verbo usado para o homem. A função dada à mulher, de ajudadora, também merece nota. A palavra ajudadora, do hebraico, aparece poucas vezes no texto bíblico (cerca de 21) e na maioria esmagadora se refere a Deus; ou seja, Ele é o ajudador. Assim como Ele é o ajudador, a mulher também o será (imitatio Dei). A mulher, que veio do homem, recebe a função/missão de cuidar do homem. O nome dado a ela, inclusive, reflete esta relação: ela é ʾšh (mulher), porque veio do ʾyš (homem) – substantivo feminino e masculino da mesma raiz.
A construção da narrativa é impressionante: sua origem é também sua missão. O homem da terra trabalhará a terra. A mulher, do homem, ajudará o homem. Por isso que, em Gênesis 3, após o pecado, ao receberem a punição divina, ambos, mulher e homem, sofrerão nas “mãos” de sua missão/origem: a mulher é punida em relação ao homem (Gênesis 3:16); o homem é punido em relação à terra (Gênesis 3:17-19). A origem é também o destino, desde o princípio.
É importante realçar que, em nenhum momento, há qualquer ideia de superioridade do homem sobre a mulher. Ambos são declarados realeza em Gênesis 1 e ambos estão conectados, funcionalmente, à sua origem em Gênesis 2. Toda a ênfase, como visto, está no imitatio Dei, o que significa que ambos são criados para imitarem o Criador.
Por fim, uma última nuance ainda em Gênesis 2. Gênesis 2:15 diz: “Tomou Yahweh Deus o homem e o descansou no Jardim do Éden para o trabalhar e guardar.”[2] O homem é tomado (lqḥ) por Deus e colocado (nḥ) no Éden. O verbo usado para dizer que o homem foi colocado no Éden é da raiz nḥ. Apesar do seu uso no hipʿil poder ser traduzido como assentar, deitar, deixar, colocar ou até mesmo pacificar, essas traduções parecem partir de seu significado principal, descansar. Em Êxodo 20:8-11 e 23:12, em textos que falam sobre o sábado, o sétimo dia, nḥ aparece em paralelo à raiz šbt, também traduzida como descanso.
Apesar de certa discussão sobre traduzir nḥ como descanso, pode-se ver pela continuação do verso que é uma alternativa possível e provável. Isso porque Deus coloca o homem no jardim para trabalhar (ʿbd) e guardar (šmr). E embora os verbos usados tenham um sentido básico simples de trabalho e serviço, carregam em si uma carga alta de relação com outros textos. Por exemplo, é a justaposição deles ligados à função sacerdotal no tabernáculo em Números 3:7-8; 8:26; 18:5-6 que chama a atenção. Em especial, o último texto citado, Números 18:5-6, além de colocar šmr e ʿbd como aquilo que os sacerdotes irão desempenhar, o narrador também usa o verbo lqḥ para apontar a escolha dos levitas. Os três verbos usados juntos em Gênesis 2:15 também o são no contexto sacerdotal de Números 18:5-6.
Diante disso, indica-se a função do homem no jardim como algo sacerdotal. Portanto, o uso desses verbos, com suas conexões sacerdotais, reforça que a tradução de nḥ deveria seguir uma linha também mais sacerdotal.
O uso de nḥ ao longo da Bíblia Hebraica parece indicar uma visão de que o descanso é um presente divino, pois Deus promete a Israel posse da terra e descanso de seus inimigos. Não obstante, dois textos conectam esse descanso dos inimigos com o santuário: Deuteronômio 12 e 1 Reis 5. Neles, o fato de Deus ter concedido descanso a Israel deveria ser um marco para que eles estabelecessem um lugar específico para Deus. Em outro conjunto de textos, agora com o uso de um substantivo derivado do verbo nḥ, esse Templo é associado ao lugar de descanso de Deus, onde estaria também seu trono (Salmos 132:7-8, 13-14; 1 Crônicas 28:2; entre outros). Ou seja, no jardim o homem descansa, servindo como um sacerdote numa espécie de santuário.
Desse modo, o ser humano é criado à imagem e semelhança de Deus, homem e mulher, para desempenhar uma função real e sacerdotal. Essas funções fazem do ser humano um imitador de Deus. A imagem de Deus é a imitação dEle: imago Dei deságua em imitatio Dei.
Referências:
BOTTERWECK, G. J; RINGGREN, H; FABRY, H. J. (eds.). Theological Dictionary of the Old Testament. 15 vols. Grand Rapids, MI: William Eerdmans Publishing Company, 2006.
CLINES, D. J. A. (ed.). The Dictionary of Classical Hebrew. Sheffield: Sheffield Academic Press; Sheffield Phoenix Press, 2011.
DOUKHAN, J. B. Genesis. Nampa: Pacific Press; Review and Herald, 2016. (Seventh-Day Adventist International Bible Commentary, 1).
EVEN-SHOSHAN, A. A New Concordance of the Old Testament: using the Hebrew and Aramaic text. Jerusalem: Kiryat Sefer Publishing House, 1989.
KÖEHLER, L.; BAUMGARTNER, W. The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament. Study Edition. 2 vols. Leiden: Brill, 2001.
TIMMER, D. C. Creation, Tabernacle, and Sabbath: the Sabbath frame of Exodus 31:12-17; 35:1-3 in exegetical and theological perspective. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2009. (Forschungen zur Religion und Literatur des Alten und Neuen Testaments).
TURNER, L. A. Anúncios de Enredo em Gênesis. Engenheiro Coelho: Unaspress; Terceira Margem do Rio, 2017.
WOLDE, E. V. Words Become Worlds: semantic studies of Genesis 1-11. Leiden: Brill, 1994. (Biblical Interpretation Series, 6).
[1] Tradução própria.
[2] Tradução própria.