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Coluna | Edson Nunes

Descanso Real – parte 2

Entenda de forma completa o que significa o descanso mencionado na Bíblia e o que isso significa na relação que temos com Aquele que nos criou,


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O descanso mencionado na Bíblia tem muito a ver com o tipo de reconhecimento de Deus como criador. Foto: Shutterstock

O texto anterior apresentou a realidade do sábado em Gênesis 2:1-3. Ali é dito que, além da construção literária de todo o capítulo 1 de Gênesis, o uso do verbo שׁבת, que significa o fim pleno de uma atividade, enfatiza o rompimento da narrativa e a apresentação do sétimo dia como uma realidade diferente dos seis outros dias da criação. Além disso, a primeira questão levantada por fim foi respondida: apesar de Gênesis 2:1-3 apresentar o foco do sábado somente na ação divina, o princípio do imitatio Dei (imitação de Deus) é trazido à tona em Êxodo 20:8-11. Ao mencionar a criação como base do sábado do sétimo dia, Moisés estabelece que o que Ele faz é em si, um convite para que eu faça.

A segunda questão levantada no texto anterior foi que, embora o entendimento do verbo “descansar” esteja relacionado à cessação da obra da criação e a celebração da mesma, o que se pode entender em relação a esse “descanso” divino?

Novamente, é necessário retornar a Êxodo 20:8-11 para compreensão mais clara:

 

(A)       “Lembra-te do dia de sábado para que o santificares;

(B)                   Seis dias trabalharás e farás todo teu trabalho;

(C)                               Mas o sétimo dia é sábado para o YHWH, teu Deus; não farás                               nenhum trabalho: nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu                                  servo nem tua serva, nem teu gado, nem o teu estrangeiro que                            está nas tuas portas;

 

(B’)                  Porquê em seis dias YHWH fez os céus, a terra, o mar e tudo que está                 neles;

(C’)                              E Ele descansou no sétimo dia;

(A’)      Portanto YHWH abençoou o dia de sábado e o santificou[i]

 

Primeiro, em C e C’, temos a repetição da expressão “sétimo dia” e em C ele é chamado de “sábado” (שׁבּת). Assim, fica claro que o sétimo dia é sábado para Yahweh. O sábado em C representa uma não ação do homem, pois ele não faz trabalho. O trabalho não é o verbo, mas o substantivo. O verbo é “fazer”, do hebraico עשה (ʿśh) e que significa diversos tipos de ação, assim como o substantivo “trabalho”, do hebraico מלכה (mlkh), pode implicar uma gama variada de situações. O foco, no entanto, parece ser que a não ação (de não trabalhar) é fundamentada na ação divina de C’ de descansar.

Os paralelos ao longo do texto são simples e evidentes: em A e A’, o homem deve santificar (qdš) porque Deus santificou (qdš); em B e B’ o homem faz (ʿśh) em seis dias porque Deus fez (ʿśh) em seis dias. E em todos os paralelos, os verbos usados são os mesmos. Para o sétimo dia, no entanto, a diferença é enfatizada.

Ou seja, apesar de a construção apontar o imitatio Dei (Deus faz, eu faço), no caso do sétimo dia o não fazer humano é resposta ao fazer divino. O não fazer trabalho algum é resultado do descanso divino. É o único texto de toda a Bíblia Hebraica em que descanso e “trabalho” aparecem em oposição. A ênfase do sábado, portanto, está na ação divina e não na humana.

As implicações disso diretamente afetam a visão de que a centralidade do sábado está naquilo que o homem faz nele. O texto claramente aponta a direção oposta. A centralidade do sábado está na ação divina que acarreta a não ação humana. O sábado é o dia de não fazer, porque Deus fez, Ele descansou.

Visão ampliada de descanso

Aliás, essa é outra implicação importante do texto. A ordem não é para que o homem descanse, mas para que ele não faça. Uma ênfase que acaba por ampliar a necessidade de entender o que é o descanso divino aqui.

O verbo destacado, acima em verde no texto, de Êxodo 20:8-11, “descansar”, curiosamente não é שׁבת (šbt). Aqui, em Êxodo 20:11, o verbo usado é נוּחַ (nûaḥ). Este verbo é mais usado em contextos espirituais e, de maneira geral, entendido como um presente de Deus dado ao homem, por exemplo, a benção que Deus dará ao Seu povo ao entrarem na terra prometida; ou como a recompensa do justo e do sábio, etc. A falta de descanso aparece como uma maldição também.

Sua primeira ocorrência é em Gênesis 2:15, como pôde ser visto brevemente em outro texto da coluna (https://bit.ly/2M3O7VO). E surge em um contexto aparentemente sacerdotal. E por que mencionar isso? Porque o verbo nûaḥ e o substantivo derivado dele, menûḥâ, “descanso”, aparecem em diversos textos conectados ao santuário, a arca da aliança e, principalmente, a promessa de descanso na terra prometida.

O templo e o lugar da arca da aliança são chamados de “lugar de descanso” em 1 Crônicas 28:2 e em Salmos 132:7-8 e 13-14, por exemplo. O templo e a arca da aliança indicam a morada de Deus entre o povo, Sua presença gloriosa, Seu trono. Do Seu trono, Ele reinava, julgando e expiando Israel. Assim, “lugar de descanso” é uma referência à Deus como Rei e Juiz. Essa ligação entre descanso e templo é que levou, por exemplo, o rabinho Abraham Heschel, a se referir ao sábado como “o santuário no tempo”, até como oposição ao santuário no espaço, o templo.

O uso do verbo nûaḥ no contexto do quarto mandamento, liga o sábado ao contexto do santuário e, portanto, ao contexto de juízo. O Salmo 95, conectado a Hebreus 4, explica exatamente essa realidade. Fala da desobediência em oposição ao descanso, mas que ainda haverá um descanso para os que temem a Deus e O obedecem.

Ou seja, a ideia de descanso biblicamente não é bem dormir, ficar sem fazer nada, não trabalhar, não viajar, não lavar louça, etc. A ideia de descanso está intrinsecamente ligada à realidade de Deus como Rei sobre a terra, como juiz supremo em Seu santuário.

Assim, o sábado é o dia de descanso, porque é o dia em que Ele reina. Isso obviamente não implica que Ele não reine nos outros dias. Entretanto, assim como Ele fez em seis dias, eu faço em seis, ou seja, Ele me dá a oportunidade de reinar durante seis dias, mas devo lembrar, no sétimo dia, que é Ele que de fato reina.

Lembrete sobre quem é o criador

 O sábado é o lembrete semanal de que nós não somos donos de tudo e de que somos mordomos. É um lembrete semanal de que nosso “reinado” é concedido pelo Rei e, portanto, nem tempo nem espaço nos pertencem completamente. É um lembrete semanal de que nossa obra, toda e qualquer obra, não tem valor no reino dEle, pois é só o descanso/reinado dEle que torna o sétimo dia santo e abençoado.

Por fim, criação e juízo, ligados ao sábado, sutilmente conectados em Gênesis 2:1-3 e Êxodo 20:8-11, aparecem claramente junto em Apocalipse 14:7: “Temei a Deus e dai-lhe glória, pois é chegada a hora do seu juízo; e adorai aquele que fez o céu, e a terra, e o mar, e as fontes das águas”.

 

Bibliografia

EVEN-SHOSHAN, A. A New Concordance of the Old Testament: using the Hebrew and Aramaic text. Jerusalem: Kiryat Sefer Publishing House, 1989.

HESCHEL, Abraham J. The Shabbat: its meaning for modern man. New York: Farrar, Straus, and Giroux, 1951.

KÖEHLER, L.; BAUMGARTNER, W. The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament. Study Edition. 2 vols. Leiden: Brill, 2001.

LARONDELLE, Hans K. Nosso Criador Redentor: introdução à Teologia Bíblica da Aliança. Engenheiro Coelho: Unaspress, Terceira Margem do Rio, 2016.

PREUSS, H. D. “נוּחַ (nûaḥ)”. In: BOTTERWECK, G. J; RINGGREN, H; FABRY, H. J. (eds.). Theological Dictionary of the Old Testament. 15 vols. Grand Rapids, MI: William Eerdmans Publishing Company, 2006.

TIMMER, D. C. Creation, Tabernacle, and Sabbath: the Sabbath frame of Exodus 31:12-17; 35:1-3 in exegetical and theological perspective. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2009. (Forschungen zur Religion und Literatur des Alten und Neuen Testaments).

 

 

[i] As marcações e a disposição espacial não fazem parte do texto massorético, mas foram acrescentadas para ajudar no entendimento.

Edson Nunes

Edson Nunes

Texto e Contexto

Um convite mensal para estudo do texto bíblico e consequente maravilhamento com ele.

Graduado em Teologia e Letras, é mestre e doutor em Letras (Estudos Judaicos) pela Universidade de São Paulo (USP). Foi pastor nas comunidades Beth B’nei Tsion (Templo Judaico-Adventista), Nova Semente e Homechurch de Perdizes. Hoje é professor da Faculdade de Teologia no Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp) e coautor do site terceiramargemdorio.org