Notícias Adventistas

Coluna | Edson Nunes

Através de nós

O Salmo 1 mostra que o justo produz frutos e não vive para si. Seu caminho é objeto direto da ação de Deus para os outros. Ou seja, Deus age através de nós.


  • Compartilhar:

Oposições entre justos e perversos apresentam muitos ensinamentos importantes no primeiro texto dos salmos. (Foto: Shutterstock)

O Salmo 1 é breve e conciso. Foi construído de maneira bem peculiar sobre uma estrutura de oposição. No início do poema, o salmista introduz o homem feliz pelo que ele não é. Esta descrição em torno da negação é feita em três linhas seguidas, cheias de movimento. O movimento, no entanto, é em direção ao não movimento.

O homem feliz não anda, não para, não se senta; ou seja, ele não cessa de se movimentar, não diminui seu ritmo. Ele não é “atrasado” pelos ímpios, ou pecadores, ou escarnecedores. Até aqui, na utilização de substantivos para descrever o oposto do homem feliz –que aparece no singular com apenas um termo– são usados três substantivos para opor-se a ele (que ainda aparecem no plural). A construção desta oposição inicial é bem interessante em hebraico. Resumindo as oposições aqui temos: singular x plural; um substantivo x três substantivos; o homem feliz x o que ele não é. Uma proposta de tradução para apontar esta curiosidade seria:

 

“Feliz o homem que:

não anda no conselho dos perversos

e no caminho dos pecadores não para

e no assento dos escarnecedores não se senta” (Salmo 1:1)

Após esta descrição negativa, o salmista apresenta o “homem feliz” em termos positivos no verso dois. O homem feliz se deleita no ensino de DEUS (a palavra ensino aqui é Torah – que carrega uma relação íntima coma a lei de DEUS). E não apenas se deleita, ele murmura/recita este ensinamento dia e noite. Aqui parece haver uma clara ligação com Deuteronômio 6:4-9. Depois de apresentar o homem feliz por oposição e descrevê-lo positivamente na sequência, o poeta ilustra suas palavras com uma imagem:

 

“e ele é como a árvore fundamentada sobre correntes de águas

que seu fruto dá na sua estação

e cuja folhagem não murcha

e tudo o que ele faz será próspero.” (Salmo 1:3)

 

Árvore plantada

Sobre esta imagem, a curiosidade reside na oposição à própria imagem do poeta no verso 1. Lá o homem feliz era o que mantinha o movimento. Aqui, no verso 3, ele é uma árvore plantada, evidentemente sem movimento. Ainda é possível perceber, nesta imagem metafórica, uma sutil inversão da ordem, já que os frutos da árvore vêm antes de sua folhagem.

Mas o importante é notar que o homem feliz cumpre o que se espera dele. Ele dá seu fruto no tempo certo. Além disso, provê sombra constante, já que suas folhas não murcham e, logo, não caem. Portanto, mesmo quando não produz frutos, ele continua tendo utilidade. Frutos no tempo certo. Sombra o tempo todo.

Meir Weiss aponta o porquê disto, dizendo: “A imagem da árvore no salmo não intenciona, portanto, descrever o destino do justo, sua recompensa; em vez disto, sua natureza essencial.” O justo serve, ou dando seu fruto, ou provendo sombra por meio de sua folhagem.

Segredo do sucesso

Ainda é vital observar que o verbo da última linha desta metáfora, prosperar/ter sucesso/ser bem-sucedido, está no tronco hifil, que indica ação causativa; todos os outros verbos, no entanto, estão no tronco qal. Ou seja: o salmista planeja chamar à atenção, pelo uso do verbo no hifil, que sucesso não é algo que ele conquista para si, mas que ele causa.

Assim, o homem feliz é o que ele não é e o que ele é. O que ele não é se apresenta em oposição aos outros. O que ele é, se apresenta em conexão com Deus. Tudo isto resulta na ação dele, do homem feliz, para com tudo e todos que o cercam, como apresentado na metáfora. O que ele não é e o que ele é, é “para” e não “por”.

Perversos

A segunda metade do Salmo 1 continua desenvolvendo a oposição que se iniciou no primeiro verso do poema. Agora, no verso 4, o salmista vai descrever os perversos. Curioso que esses perversos, no plural mesmo, aparecem indefinidos no verso 1, mas agora, no verso 4, estão com artigo (no hebraico), ou seja, definidos. A descrição destes perversos, no entanto, não segue à mesma linha da descrição do homem feliz. Não há descrição, nem negativa e nem positiva. Os perversos são apresentados diretamente por meio da metáfora.

Ora, se o homem feliz era descrito como uma árvore, com folhas sempre e frutos no tempo certo, os perversos são descritos, em clara oposição, como palha. Aqui é importante lembrar do aspecto do movimento. Como em tudo no Salmo 1, há oposição: se a árvore está parada, a palha está espalhada. O poeta parece querer acentuar a total discrepância entre o homem feliz e os perversos.

Esta metáfora da palha é comum na Bíblia Hebraica para descrever os opositores de DEUS e perversos. Ela aparece em Jó 21:18; Salmo 35:5; Oséias 13:3; Isaías 17:13, por exemplo. Contudo, como na metáfora da árvore, a metáfora da palha não parece indicar o destino dos perversos, mas sua essência, sua natureza. Não há possibilidade de sombra e fruto vindos da palha. A palha é seca e sem vida. O estilo de vida dos perversos é um fim em si mesmo.

Já o homem feliz busca o serviço, ser a sombra e dar o fruto no tempo certo. Meir Weiss aponta um aspecto muito importante que indica isto e está na construção do salmo. Ele fala que Deus e o homem feliz são sujeitos de verbos transitivos, mas os perversos não o são em nenhum momento. O verso 5 retoma o assunto do verso 1, repetindo, inclusive, pela terceira vez ‘perversos’ e, pela segunda ‘pecadores’, mas deixando ‘escarnecedores’ de lado.

Agora a oposição se dá em nível legal. Os perversos não serão absolvidos no juízo. E os pecadores não estarão na congregação dos justos. Esta retomada do verso 1 também carrega uma curiosidade. No final do verso 1, os perversos (escarnecedores) estão assentados. No verso 5 eles não se levantam. Ou seja, não há como se levantar de onde eles estão assentados.

A conclusão do Salmo 1 é construída em uma oposição simples, de paralelismo sintático: há o caminho dos justos e há o caminho dos perversos. A expressão “caminho dos justos”, no entanto, é objeto direto do verbo transitivo “conhecer”, cujo sujeito é Deus. Já “caminho dos perversos” é o sujeito do verbo intransitivo “perecer”. A sentença final torna os justos objetos do conhecimento divino, denotando íntimo relacionamento entre ambos: homem feliz e Deus. Já os perversos são sujeitos do seu próprio fim, responsáveis por sua morte.

Uma última coisa precisa ser realçada. O Salmo começa falando do homem feliz, no singular, mas termina falando de justos, no plural. A mudança é sutil e está diretamente relacionada com a metáfora da árvore: o justo produz frutos!

Assim, a conclusão é que o conhecido de Deus não vive para si. Seu caminho é objeto direto da ação de Deus para os outros.


Referências bibliográficas:

ALTER, Robert. The Art of Biblical Poetry. New York: Basic Books, 1985.

ALTER, Robert. The Book of Psalms: a translation with commentary. New York: W. W. Norton & Company, 2007.

KOEHLER, Ludwig, BAUMGARTNER, Walter. The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament: Study Edition. 2 vol. Boston: Brill, 2001.

WEISS, Meir. The Bible from within: the method of total interpretation. Jerusalem: The Magna Press, 1984.

Edson Nunes

Edson Nunes

Texto e Contexto

Um convite mensal para estudo do texto bíblico e consequente maravilhamento com ele.

Graduado em Teologia e Letras, é mestre e doutor em Letras (Estudos Judaicos) pela Universidade de São Paulo (USP). Foi pastor nas comunidades Beth B’nei Tsion (Templo Judaico-Adventista), Nova Semente e Homechurch de Perdizes. Hoje é professor da Faculdade de Teologia no Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp) e coautor do site terceiramargemdorio.org