Três religiões, um teto
Os riscos para a identidade bíblica baseada no Apocalipse do projeto que procura unir três religiões em uma mesma casa de oração na Alemanha.
The House of One
Uma amostra disso está num projeto inédito que está em andamento em Berlim, na Alemanha. Uma associação que reúne líderes judeus, cristãos e muçulmanos, além de órgãos governamentais e acadêmicos seculares, e promove uma campanha de arrecadação de fundos para a construção da House of One (Casa de Um) – um complexo que vai abrigar uma mesquita, uma igreja e uma sinagoga sob um mesmo teto.
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A ideia é que seja oferecido um espaço reservado para cada um dos três grupos, porém os três espaços sagrados estarão ligados entre si por um mesmo hall. Frequentadores dos espaços vão se encontrar nesse espaço central. Segundo os organizadores, o objetivo é proporcionar uma área para a convivência e incentivar o diálogo e o respeito mútuos. “Cada fé manterá seus aspectos distintivos dentro de suas respectivas áreas. (...) E, juntos, queremos usar o espaço central para o diálogo e discussões, e também para pessoas sem fé” – comenta o pastor Gregor Hohberg, um dos “embaixadores” do movimento.
Um aspecto da natureza revolucionária da iniciativa é o simbolismo do local escolhido para a construção do complexo: exatamente sobre os fundamentos da primeira igreja cristã de Berlim, no coração da capital alemã. A Petrikirche (“Igreja de Pedro”), cujas origens remontam ao século 12, tinha sido seriamente danificada na Segunda Guerra Mundial e destruída no período da Guerra Fria. Após considerar o que fazer com o local, optou-se por cedê-lo a um projeto que não atendesse a um só grupo religioso.
Veja um vídeo sobre o projeto (somente em inglês):
Por fora, o complexo será marcado pela neutralidade dos tijolos, sem nenhuma característica religiosa, pois “comunicar o interior da House of One para o exterior” não contaria a história direito, afirma o arquiteto Wilfried Kuehn. “Para nós, é importante que a House of One seja uma unidade na paisagem da cidade, que não se conforme com seus arredores imediatos. As pessoas vão perceber que é algo novo e extraordinário, sem saber exatamente o que é” – completa Kuehn.
Valores
Porém, é no campo das ideias que o projeto revela suas maiores rupturas. Como um plano dessa natureza logicamente exigiria, foram estabelecidos os valores fundamentais para nortear a convivência num mesmo local. Dignos de louvor são os ideais de “não violência e de respeito por toda vida”, solidariedade, “respeito e igualdade”, princípios que nós, como adventistas defendemos em nossos esforços pela liberdade religiosa mundo afora.
Contudo, esses valores amplos propostos pela iniciativa contêm elementos novos que desafiam os valores bíblicos. Ao mesmo tempo que se estabelece o respeito ao outro como um valor inegociável (como realmente é), a proposta é que não se faça proselitismo religioso. Assim, o projeto se mostra contrário tanto à ideia de identidade especial quanto de missão, uma ideia tipicamente pós-moderna. Se respeitar o outro significa não pregar para ele, certamente, pregar seria interpretado como um desrespeito à sua identidade ou mesmo seria “considerá-lo ou tratá-lo como um cidadão de segunda classe”. Isso leva a conclusões delicadas, pois rejeita a possibilidade de que um grupo humano tenha a verdade e que possa pregá-la. Por sua vez, a “verdade” fica aprisionada à tradição e à cultura religiosa de cada povo. E cada verdade deve ser respeitada como tendo um valor particular, mas nenhuma delas pode ser concebida como um valor absoluto, e sim, relativo.
Ambos os aspectos são vistos de modo bem diferente pelos adventistas, que encontram sua identidade única em Apocalipse 12:17 e 14:12, e sua missão em Apocalipse 14:6-12. Deus tem um povo remanescente na Terra, que “guarda os mandamentos de Deus e tem a fé em Jesus” (14:12), cuja missão é “pregar aos que se assentam sobre a terra, e a cada nação, e tribo, e língua, e povo” (v. 6). Embora Deus tenha seu filhos em todas as religiões e mesmo fora delas, e todas as religiões devam ser respeitadas, não podemos renegar nossa identidade e missão, em nome do “respeito” politicamente correto de nossos dias.
Forçar outros a ter a mesma fé seria um não só um desrespeito, como uma violência, mas compartilhar a fé em amor seria gesto de bondade. Sem querer ser ofensivos, não devemos deixar de afirmar que a verdade existe, e que ela se encontra tanto na Palavra escrita (a Bíblia) como na Palavra encarnada (Jesus).
Por outro lado, notamos também que a icônica iniciativa de The House of One não é um ato isolado, mas a condensação do espírito dos tempos atual. O relativismo aplicado à religião pende ao ecumenismo. Embora proponha a manutenção das distinções e o respeito mútuo, a ênfase está na interação e na comunicação tende ao compartilhamento. Isso não significa que o projeto pretenda que os grupos se fundam, mas que eles busquem intencionalmente descobrir o que têm em comum, não só entre si, mas também com relação à sociedade secular.
De acordo com essa mentalidade, defende-se que os grupos não eliminem seus elementos distintivos, mas que também não os proponham publicamente. Esse tipo de pregação é quase que um novo princípio universal, defendido desde o presidente norte-americano até os camelôs de São Paulo. Afinal, “Deus é um só”, e, para conviver em paz entre humanos, precisamos trabalhar em torno de nossos “valores comuns”.
Visão de futuro
Numa época em que não existia pós-modernidade, nem se imaginava um ecumenismo, os adventistas pregavam que isso iria acontecer. Para os adventistas, a realidade atual é um sinal de que os eventos finais estão em andamento. “Há anos, porém, que nas igrejas protestantes se vem manifestando poderoso e crescente sentimento em favor de uma união baseada em pontos comuns de doutrinas. Para conseguir tal união, deve-se necessariamente evitar toda discussão de assuntos em que não estejam todos de acordo, independentemente de sua importância do ponto de vista bíblico” (Ellen White, em O Grande Conflito, página 445).
Porém, ao mesmo tempo em que rejeitam o ecumenismo que corrompe o compromisso com a Palavra de Deus, os adventistas encorajam uma atitude proativa de respeito e amor cristão com líderes e membros de outras igrejas. Ellen White, por exemplo, disse que os pastores adventistas deveriam se aproximar dos pastores de outras denominações. Deveriam “orar por esses homens e com eles, pelos quais Cristo intercede (...) Como mensageiros de Cristo, deveríamos manifestar um interesse profundo e fervoroso nesses pastores do rebanho (Ellen White em Testemunhos para a Igreja, 6: página 78; Evangelismo, páginas 143, 144, 562). Porém, jamais esse contato amistoso e local deveria envolver um comprometimento de “um princípio da verdade” (Ellen White em O Outro Poder, página 79; ver também O Grande Conflito, página 45).
As complexas transformações do mundo atual desafiam cada vez mais o povo de Deus. Surgem iniciativas com propósitos muito positivos, por um lado, mas que levantam sérios questionamentos, por outro. Ao mesmo tempo em que devemos evitar ferir sensibilidades, não podemos nos desviar de nosso apego à Bíblia e aos seus ensinos. Devemos respeitar as diferenças, mas não esquecer de quem somos e qual é a nossa missão. Em tempos de relações cada vez mais delicadas, precisamos tanto da direção divina como de um conhecimento profundo para dar uma resposta adequada aos novos desafios.