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Coluna | Diogo Cavalcanti

As profecias apocalípticas e a valorização da paz

As profecias apocalípticas não apontam para qualquer extremismo. Pelo contrário. Leia o artigo e saiba mais.


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A compreensão das profecias apocalípticas conduz à valorização da paz e da liberdade religiosa

A cada novo atentado terrorista, a discussão sobre o fundamentalismo religioso vem à tona no Ocidente. O assunto ganha mais e mais volume, sendo debatido intensamente mesmo em países distantes do terror. Alguns têm sido levados a repensar a própria dinâmica entre a religião e o estado, o que faz acender uma luz amarela no painel profético. Em primeiro lugar, porque uma corrente defende a revisão dos direitos de certas pessoas, numa negação dos princípios democráticos. Outra corrente defende a imposição de uma supremacia cristã sobre a sociedade. Certos grupos da direita cristã nos EUA lutam pelo fim da separação entre igreja e estado, sendo que foi justamente essa separação que possibilitou a existência de liberdade religiosa, e o fim dela certamente representaria o início da tirania e da perseguição religiosa.[1]

Para os fundadores da nação americana, pioneira em liberdade religiosa, a separação entre igreja estado permitiria uma coexistência pacífica entre o laicismo e a religião, de modo que preservaria a integridade de ambos.[2] Nesse modelo, a democracia e a liberdade de crença passaram a ser considerados como valores em si mesmos, o que enobrece o poder público. A religião, por sua vez, não precisou negociar seus valores como faria caso se comprometesse com a política. Porém, quando criminosos se valem dos direitos democráticos para tirar vidas humanas em nome de Deus, alguns começam a cogitar que nem todos deveriam ser tratados da mesma forma, o que significaria um retrocesso dos princípios democráticos. Assim, o dilema dos governantes é como combater o terrorismo sem abrir mão dos valores ocidentais.

Fundamentalismos

Na discussão sobre o fundamentalismo cabe citar uma frase atribuída ao pensador francês Voltaire: “Se queres conversar comigo, define primeiro os termos que usas." Talvez o maior problema nesse debate seja a própria definição do termo “fundamentalismo”. Esse rótulo tem servido para classificar negativamente todo tipo de gente religiosa, desde os monstros que atacam pessoas em aviões e shoppings, até aqueles que vão humildemente à igreja e acreditam na Bíblia como um livro sagrado e verdadeiro. Parece não haver na linguagem popular uma distinção clara entre ambos os grupos.

De acordo com George Marsden, o termo fundamentalismo surgiu no início do século 20 nos Estados Unidos, a partir do confronto entre o cristianismo protestante tradicional e a teologia modernista do evangelicalismo americano.[3] Certos “fundamentos” doutrinários se contrapunham à crítica histórica e liberal que reduz os escritos bíblicos a um produto da cultura. Assim, o conceito clássico do fundamentalismo expressa a adesão estrita a um texto sagrado, especialmente quanto à existência de Deus, ao criacionismo e à condição humana.

Os terroristas islâmicos reclamam um apego incondicional a sua compreensão do texto sagrado, porém isso não os iguala à imensa maioria de religiosos (muçulmanos, cristãos, judeus, etc.) que jamais pegariam em armas para matar, muito menos em nome da religião. A interpretação dos textos leva alguns à radicalização, e outros, ao pacifismo. Porém, essa forma de pensar não é característica apenas dos meios religiosos: o compromisso radical com ideologias políticas e seus “textos sagrados”, entre eles O Capital e Minha Luta, já provocou o extermínio de mais de 100 milhões de pessoas sob as ordens de sanguinários como Hitler, Stalin e Mao Tsé-Tung.

O papel da escatologia

Para as ideologias religiosas, tanto o pacifismo quanto a radicalização passam, de modo especial, pela escatologia. Frequentemente, é uma interpretação escatológica que faz com que grupos extremistas assumam uma postura violenta, pois se sentem chamados a fundar um tipo de reino de Deus aqui e agora. É nesse ponto que surge a importância de uma compreensão adequada dos livros apocalípticos da Bíblia. Uma de suas belíssimas características é a revelação da concretização do reino escatológico não pela imposição humana, mas pela intervenção divina. Não são os súditos humanos que vindicam pela força o Soberano divino, mas é Deus que intervém soberanamente nos assuntos humanos.

A intervenção divina é evidente em Daniel 2. A pedra que esmiúça a estátua a qual representa uma sequência de impérios humanos é “cortada sem o auxílio de mãos” (v. 34), o que representa o ensino de que “o Deus do céu suscitará um reino” (v. 43). “O reino, e o domínio, e a majestade dos reinos debaixo de todo o céu serão dados ao povo dos santos do Altíssimo”, e não tomados por eles à força (Daniel 7:27). O próprio Jesus disse e reiterou que, em sua primeira vinda, seu reino não era deste mundo (João 18:36). Contudo, em sua segunda vinda, a situação se reverterá, pois chegará o momento em que “o reino do mundo se tornou de nosso Senhor e do seu Cristo” (Apocalipse 11:15). Nos textos apocalípticos, os filhos de Deus não portam armas; pelo contrário, são vítimas cujo sangue derramado clama pela justiça divina (Apocalipse 6:9, 10).

Perspectiva adventista

Especificamente, no caso do adventismo, que se vê como um movimento inspirado e originado primariamente dos textos escatológicos de Daniel e Apocalipse, o pacifismo é uma de suas características mais evidentes em vários aspectos:

(1) Na tradição histórica da não combatência, exemplificada em incríveis biografias. Uma delas é a do adventista americano Desmond Doss, o primeiro “objetor de consciência” a se recusar a pegar em armas na Segunda Guerra Mundial e que foi condecorado com a medalha de honra, por ter salvado muitas vidas como padioleiro. Do mesmo modo procedeu o adventista alemão Franz Hasel, que aos 40 anos foi forçado a servir em uma unidade de elite, construtora de pontes, do exército de Hitler. Hasel, que fez um voto de não matar, jogou sua pistola fora e confeccionou uma arma de madeira para levar na cintura. Como sua unidade ia à frente do exército, ele ainda salvou muitos judeus, avisando-os para fugirem a fim de não serem pegos pela SS (confira essa história no livro Mil Cairão ao Teu Lado). Ao longo de toda a guerra Hasel não deu um único tiro.

(2) Na defesa da liberdade religiosa como um valor em si. A partir de sua compreensão do livre-arbítrio como um princípio divino, os adventistas têm, no campo jurídico, um dos serviços mais organizados e bem-sucedidos em defesa do direito da crença, mesmo daqueles que pensam diferentemente deles. Aqui cabe outra frase atribuída a Voltaire, mas que foi usada por Evelyn Beatrice Hall em correspondência com o iluminista francês: “Não concordo com uma palavra do que você diz, mas defenderei até a morte o direito de dizê-las”. Os adventistas pensam assim.

(3) Na defesa da separação entre igreja e estado e numa postura apolítica. Assim como os fundadores da nação americana, os adventistas acreditam que a união entre a igreja e o estado fatalmente produz opressão e corrompe ambas as esferas.

(4) Na crença de que o conflito é primordialmente espiritual e de que sua missão é falar ao coração. Seguindo os ensinos bíblicos, os adventistas acreditam que sua única razão de existir é para pregar o “evangelho eterno” ao mundo (Apocalipse 14:6) e que sua única arma é a Palavra de Deus, a qual alcança o mais profundo do ser, num apelo puramente espiritual e religioso (Hebreus 4:12).

Não é à toa que a organização adventista está espalhada em 216 países do mundo. Se a Igreja não fosse pacifista nem se preocupasse com o dia-a-dia das pessoas, não teria tantas portas abertas nem seria tão multicultural. Ŋossa escatologia nos impulsiona a sermos melhores cidadãos, a cuidarmos do corpo e do planeta, a votarmos conscientemente, a servirmos a sociedade com igrejas, escolas, universidades, hospitais, fábricas de alimentos, agência humanitária, mídias de massa, lanchas e aviões, sem mencionar uma infinidade de ministérios e campanhas que buscam ajudar pessoas e aliviar sua dor aqui e agora.

À medida que a discussão sobre os fundamentalistas avança e sombras se acumulam, é preciso cuidado para não se misturar o joio com o trigo. Há os que se explodem com bombas, há os que pregam a violência, há os religiosos que pretendem dominar a política, mas há também uma grande maioria dos que amam o Deus de amor e que projetam sua maior esperança para o Reino. Isso não os faz menos ligados à realidade ou descomprometidos com o bem-estar social; pelo contrário, os motiva a amar o semelhante e, se preciso, dar a vida por ele (1João 3:16). O estudo das promessas sobre o futuro conduz a uma vida mais consciente e responsável no presente, e isso deve ser reconhecido. “Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus” (Mateus 5:9).

Referências:

 

[1] Moore, Marvin. Apocalipse 13: Isso Poderia Realmente Acontecer? Tatuí-SP: Casa Publicadora Brasileira, 2013, p. 262, 264.

[2] Ibid. 268, 269.

[3] Marsden, George M. Fundamentalism and American Culture. Nova York: Oxford University Press, 2006, p. 4.

Diogo Cavalcanti

Diogo Cavalcanti

Apocalipses

O universo das profecias bíblicas e suas respostas para as inquietações atuais

Formado em Teologia e em Comunicação Social, e pós-graduado em Letras, trabalha na Redação da Casa Publicadora Brasileira (CPB). É um dos editores de livros, entre eles, o Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia.