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A história bíblica e seus contextos

Especialista explica fala sobre como cultura e contextos podem ter uma influência sobre a maneira como entendemos o texto bíblico.


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A história bíblica não existe em um vácuo, mas dentro de culturas estabelecidas. (Foto: Shutterstock)

Algumas pessoas se esquecem de que a Bíblia Sagrada, como a conhecemos, é, na verdade, uma coleção de 66 livros escritos em um grande período (em torno de mais de 1.500 anos) por dezenas de autores. Grande parte deles viveu em momentos totalmente distintos. Quando você lê a tradução da sua Bíblia está tomando contato com a Palavra de Deus inspirada. Ao mesmo tempo, o que chegou até nós são escritos de pessoas como Moisés, educado por um bom tempo segundo a cultura egípcia, e o apóstolo Pedro, um pescador que se tornou discípulo de Jesus.

A partir disso, torna-se importante compreender que existe uma história bíblica e seus contextos. Isso ajuda no entendimento de trechos bíblicos escritos séculos antes. O resultado de um melhor entendimento da Bíblia é uma melhor aplicação dos princípios na vida. Para falar acerca disso, a Agência Adventista Sul-Americana de Notícias (ASN) conversou com André Daniel Reinke. Bacharel em desenho industrial, ele é licenciado em história, é mestre em teologia (concentração em história das teologias e religiões) e doutor em teologia pelas Faculdades EST. Desde 2005, publica livros de teologia-história pela editora Hagnos e, desde 2018, pela editora Thomas Nelson Brasil.

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Importância

André Reinke ressalta a necessidade de uma percepção mais analítica das circunstâncias em que o texto bíblico foi escrito. (Foto: Divulgação)

De acordo com a sua experiência e pesquisas, qual a importância da compreensão histórica e cultural de contextos bíblicos para se entender melhor o texto?

Naquilo que é necessário para a nossa salvação, não necessitamos saber de contexto. Nisso a Bíblia é absolutamente clara e direta. Ninguém vai se perder por não compreender algum detalhe histórico. Entretanto, a Bíblia também é uma fonte inesgotável de ensinamentos para nossa vida com Deus. Para desvendar esses tesouros, é importante saber dos contextos, das estruturas literárias, da intertextualidade e de todo o ferramental que a pesquisa bíblica tem nos fornecido. Assim, por exemplo, o texto do Êxodo ganha mais profundidade quando percebemos que há uma “luta de deuses” nas dez pragas, na qual Iahweh demonstra seu poder ante as falsas divindades do Egito; e que o próprio faraó era considerado o deus Hórus encarnado, e, portanto, um mediador entre os deuses e os homens. O texto ganha novas cores quando entendemos que Moisés tem como interlocutor um rei considerado divino pelos egípcios, e que a morte de seu primogênito é também a morte de um futuro “deus”.

Crenças

Nas suas obras Os outros da Bíblia e Aqueles da Bíblia, você articula, entre outros temas, a ideia da influência das crenças de outras nações vizinhas em relação aos reinos de Israel e Judá. Qual o grau de influência dos costumes de outras nações exerceu sobre a própria forma como a religião do antigo Israel se desenvolveu?

Tanto o antigo Israel como os autores bíblicos estão em constante diálogo com as religiões e culturas de outros povos. E nesse diálogo há muitas discordâncias entre o que Israel descobriu pela revelação divina e o que os outros povos praticavam – e às vezes até mesmo com o que o povo israelita praticava. Mas também há concordâncias, porque Israel não apareceu no mundo como extraterrestre, não “caiu do céu”. Por isso, a Bíblia e o antigo povo israelita navegaram em um mesmo “rio cultural” da Antiguidade. Por vezes, os arquétipos e símbolos são os mesmos. Assim, a ideia de que a luz tem a ver com a bondade, e as trevas com a maldade, são universais; ou aquela sensação de que Deus está no “alto”. Por isso, os templos eram construídos sempre no topo de montanhas. Moisés não sobe um monte para receber a lei? Cristo não foi crucificado em um monte, e não foi em um monte que ele pregou seu famoso sermão? Enfim, assim podemos dizer que muitas vezes elementos culturais puderam ser legitimamente assimilados porque eram baseados em princípios considerados corretos na revelação bíblica.

Cultura bíblica

Que curiosidades você pode citar, dentro de suas pesquisas, quanto a aspectos históricos da chamada cultura bíblica, e que acabam explicando melhor textos bíblicos que lemos hoje em pleno ano de 2023?

Vou citar apenas um exemplo que percorre toda a Bíblia. A ideia de templo, na antiguidade, é de ser um “horizonte”, o lugar em que o céu e a terra se encontram. Ou seja, o lugar em que o divino “desce” para a terra, e que o humano “sobe” para adorar. É uma espécie de limiar entre o sagrado (mundo divino e especial) e o profano (mundo humano e cotidiano). A perspectiva do ser humano encontrando o divino no templo está também na lógica por trás da estrutura do tabernáculo e do templo de Jerusalém.

Também é por esse mesmo motivo que Jesus afirma que o Seu próprio corpo era o verdadeiro templo (João 2:19-22), pois ele é a própria união de Deus com o homem, o “lugar” em que o céu e a terra se encontram. Por isso, a teologia desenvolveu, também, a doutrina das naturezas humana e divina em uma única pessoa, Jesus Cristo. E, por isso, o Novo Testamento considera cada crente um templo do Espírito Santo, porque assim Deus encontra o humano em cada um de nós.

Judaísmo e cristianismo

No seu livro mais recente Nós e a Bíblia você parece trabalhar mais as diferenças de identidades entre o judaísmo e o cristianismo. Historicamente falando, o que é preciso entender sobre a formação da Bíblia Hebraica, do Novo Testamento e, em última instância, do próprio cânon bíblico?

Penso que o principal é entendermos que a Bíblia é produto de um processo histórico longo e, como dizem alguns autores, feito “em mutirão”. Deus se revelou e inspirou uma comunidade, o antigo Israel, e esta comunidade nos legou a Bíblia, tanto a hebraica (Antigo Testamento), como o Novo Testamento. Afinal, os textos dos seguidores de Jesus também foram produzidos por judeus ou gentios inseridos no judaísmo do primeiro século.

Por ser comunitário, trata-se de um texto de múltiplas vozes, muitas vezes com tensões entre elas. Isso revela que Deus não pode ser compreendido em uma única visada. Como diz Justo González, Deus nos deixou quatro evangelhos para que não pudéssemos tomar essa mensagem e a “colocar no bolso” de acordo com nossas preferências.

Interpretação

O que um leitor responsável deve fazer antes de dar uma interpretação ao texto bíblico, especialmente levando em conta o fator do contexto histórico e cultural em que foi escrita?

Penso que deve ler mais de uma tradução e mais de um comentário, para início de conversa. Estou falando aqui de pessoas comuns, como eu, que não dominam manuscritos originais. Também seria bom ler livros mais recentes a respeito da história e arqueologia dos tempos bíblicos, pois as pesquisas têm evoluído muito e publicações atualizadas são sempre bem-vindas. Equívocos vão sendo superados com o tempo. Também é positivo avaliar uma história da interpretação, ou seja, como determinado texto foi interpretado ao longo do tempo. Não somos os primeiros a interpretar e o legado é importante na tradição cristã. Por último, sugiro também dar uma olhada nos meus livros. São fruto de anos de experiência de ensino em igrejas e seminários, escritos em linguagem acessível para o leitor de “chão de igreja”, mas sem perder a profundidade acadêmica.


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