Como lidar com os nones, grupo sem filiação religiosa
Autor de pesquisa fala sobre caminhos para alcançar crescente grupo de pessoas que não se identifica com religiões formalmente.
O crescimento daqueles que se declaram nones, ou pessoas sem filiação religiosa, tem sido continuamente superior ao da população em geral em várias culturas.[1] Embora uma minoria no grupo se diga ateia ou agnóstica, a grande massa dos nones afirma que acredita em Deus, mas rejeita as instituições religiosas.[2] No Brasil, eles são o terceiro maior grupo no campo religioso, atrás apenas de católicos e evangélicos pentecostais.[3] Nos Estados Unidos, eles são o segundo maior grupo, depois dos protestantes como um todo.[4]
Em minha dissertação de Ph.D. defendida na Universidade Andrews, em março de 2021, estudei esse grupo na cultura brasileira e americana, a partir de duas plataformas. Primeiro, os nones foram analisados com base em selecionados elementos que caracterizam as teorias de secularização utilizadas pela sociologia da religião. Além disso, analisei narrativas bíblicas que descrevem a missio Dei (conceito da área de missiologia que significa missão de Deus) entre estrangeiros com o objetivo de encontrar princípios bíblicos aplicáveis aos nones, visto não haver um texto bíblico diretamente relacionado com o grupo, por ser este um fenômeno muito posterior ao período bíblico.
Conceito dos nones
Os nones são o resultado da mudança no pensamento humano. Seja por influências vindas do movimento iluminista do período moderno, bem como por influência de pressupostos defendidos pelo pós-modernismo atualmente. Entre os principais legados do iluminismo moderno, refletidos nas características deste grupo, está o princípio da liberdade religiosa e a autonomia do indivíduo,[5] descrita por Taylor como “ética da autenticidade.”
Segundo esse pensamento, todos os seres humanos são autônomos, e, portanto, cada individuo deve “realizar a humanidade” de uma maneira específica e pessoal.[6]
Entre as principais causas do fenômeno dos nones, associadas ao pós-modernismo, estão o relativismo e o aspecto funcional da religião. O cardápio religioso é construído individualmente, pelo critério do gosto pessoal e da funcionalidade, seguindo um modelo de mercado religioso, sem levar em conta o conteúdo bíblico como norma de fé e prática.[7]
Outras influências causais para o fenômeno são a ênfase na comunicação direta com o transcendente, sem mediação institucional, o que Davie chama de “crer sem pertencer,[8] e a religiosidade metafísica, subjetiva e existencialista - sem parâmetro dogmático, trazida à tona pelo espiritualismo moderno originado no final do século XIX.[9]
Por fim, o avanço científico e tecnológico também é um fator que explica o fenômeno dos nones, na medida em que promove o secularismo, refletido especialmente na pequena parcela formada pelos ateus e agnósticos. Como atesta Berger, o pluralismo gera um aumento da desfiliação religiosa e enfraquece as fronteiras institucionais. Isso contribuiu para o crescimento deste grupo expressivo como última etapa do processo de mudança religiosa.[10] Como os jovens são os mais suscetíveis à mudança social, os nones estão mais substancialmente representados entre eles.[11]
Relação com os nones
Meu estudo concluiu que existem pelo menos oito áreas consideradas sensíveis na relação missional com os nones nas duas culturas em estudo. Algumas delas são críticas ou difíceis de se relacionar de uma perspectiva missionária, outras podem ser vistas como uma oportunidade de acesso missional com o grupo. A pesquisa em foco analisou as oito áreas sensíveis na comunicação com este grupo e sugeriu para cada uma delas princípios missiológicos que podem servir como pontes na relação com o grupo em cada uma dessas áreas.
A primeira área é a identidade de Deus. A maioria do nones rejeita a religião, mas não Deus. No entanto, poucos deles acreditam no Deus descrito pela Bíblia; a maioria vê Deus como uma força ou energia.[12] O trabalho missionário baseado no poder salvador de Deus, o foco do Novo Testamento na manifestação da energia de Deus, e o estudo da pessoa de Cristo como a revelação perfeita de Deus são princípios que podem ajudar essas pessoas a ter um encontro real com Deus.
A segunda área crítica no relacionamento é a Bíblia como fonte da verdade. Fortemente influenciados por conceitos pós-modernos, os nones relativizam o conteúdo da fé, reduzindo a verdade ao nível individual.[13] A narração de histórias, a adequação do conteúdo bíblico às necessidades, o estudo relacional/aplicativo das Escrituras, o uso da lógica hebraica, que, diferente da logica grega, não vê os extremos como opostos, mas como complementares, e a missão integral são alguns princípios sugeridos para aproximar os nones do texto bíblico.
A terceira área crítica é a religião institucional. As pessoas que se identificam com esse grupo rejeitam as instituições religiosas, vendo-as como um símbolo de opressão e poder.[14] No entanto, a pesquisa mostrou que a congregação local desempenha um papel importante no desenvolvimento espiritual dos membros e na formação de comunidades relacionais. É na igreja local que ocorre o desenvolvimento e discipulado dos membros para cumprir a missão cristã.[15]
Neste caso, os nones podem ser alcançados por meio de uma abordagem pessoal, incluindo o evangelismo de amizade, o modelo sal de evangelismo, a atitude ḥesed (atos de bondade, acolhimento, serviço desinteressado, entre outras formas de demonstrar o amor de Deus), e pequenos grupos relacionais. No momento certo, tais pessoas poderão superar o preconceito contra as instituições e eventualmente se juntarão ao culto coletivo da igreja.
A quarta área crítica são as barreiras transculturais, decorrentes da diferença entre a cosmovisão dos Nones e a cosmovisão bíblica. O princípio da contextualização, sugerido nesta pesquisa, pode ajudar a superar essas barreiras. [16]
Oportunidades
Três áreas apresentam oportunidades no relacionamento missionário com os nones. São casos em que o evangelho pode oferecer o que eles desejam ou esperam. A primeira delas é o pluralismo cultural/religioso. Pessoas que afirmam não ter filiação religiosa apreciam o acesso a produtos religiosos, o sincretismo e a liberdade proporcionada pelo pluralismo, embora critiquem a competição por membros e a natureza comercial da fé incentivada pelo mesmo pluralismo.[17]
A diversidade de abordagens é um princípio sugerido para o relacionamento em uma sociedade pluralista, incluindo música contextualizada. O desafio aqui é ser relevante dentro dos parâmetros da música sacra, além de envolver grupos relacionais, ministério social, atividades para crianças, o uso das mídias sociais entre outros. O objetivo é criar uma conexão com os nones e expô-los a uma experiência com Jesus, com a palavra e com o poder de Deus.
A segunda área de oportunidade é a abertura aos relacionamentos e à vida em comunidade. Os nones valorizam os relacionamentos e a experiência da comunidade.[18] Alguns insights para uma aproximação dentro dessa característica podem ser o evangelismo de amizade e uma atitude de aceitação. Isso não quer dizer aceitar o erro das pessoas, mas criar uma conexão que permita o individuo se sentir incluído, algo fundamental para a mudança que o evangelho proporciona. O objetivo é desenvolver comunidades nas quais este grupo de pessoas se sinta aceito antes de tomar uma decisão cognitiva.
A terceira área de oportunidade é o papel social da religião. Os nones olham positivamente para instituições que prestam serviços sociais em benefício de pessoas carentes e do meio ambiente. Em geral, buscam uma “causa” relevante da qual fazer parte, mesmo que estas sejam promovidas e lideradas por instituições religiosas.[19] Os princípios da ação solidária e do ministério incarnacional podem demonstrar o papel social da religião e apresentar a autenticidade da comunidade cristã, sendo uma ponte para atraí-los à fé.
Por fim, as áreas de comunicação e tecnologia representam tanto uma relação crítica quanto uma oportunidade para o contato missional com os nones. Eles apreciam os produtos religiosos acessíveis pela mídia, mas criticam as igrejas que usam a mídia para buscar membros, exercer influência política e obter benefícios financeiros.[20] Portanto, alguns princípios recomendados para a comunicação de massa na relação missionária com esse grupo envolvem o uso criterioso sem partidarismo da mídia, o equilíbrio em questões de natureza comercial, a garantia de que o conteúdo seja relevante ao interesse do ouvinte e a conscientização de questões humanitárias e causas socioambientais.
Portanto, como cristãos e discípulos de Jesus, precisamos notar a onda cultural da mudança contemporânea como uma das oportunidades mais significativas para alcançar pessoas para Cristo. Recomenda-se uma ação intencional e planejada da igreja para promover a missão com o grupo. Tal projeto pode envolver educação teológica, agências missionárias e treinamento em abordagens práticas, entre outros elementos. O crescimento do número de nones, nas últimas décadas, requer um esforço proporcional por parte da igreja para alcançá-los para Cristo.
Jolivê Chaves é doutor em Teologia e diretor regional do Seminário Latinoamericano de Teologia (Salt) na Bahia.
Referências:
[1] Uma em cada seis pessoas no mundo se identifica como não religiosa. Eles são 16% da população do planeta, cerca de 1,2 bilhão de pessoas. Os cristãos são o maior grupo religioso, com 2,3 bilhões de adeptos e 31,2% da população mundial. O segundo maior grupo é o muçulmano, com 1,8 bilhão de seguidores, representando 24,1% da população. See Pew Research Center, “Christians Remain World`s Largest Religious Group, but They Are Declining in Europe,” April 5, 2017, https://www.pewresearch.org/fact-tank/2017/04/05/christians-remain-worlds-largest-religious-group-but-they-are-declining-in-europe/. Dividing the world into six large areas, non-religious represent the following percentages of the respective populations: Asia-Pacific 21.2 percent; Europe 18.2 percent; North America 17.1 percent; Latin America-Caribbean 7.7 percent; Sub-Saharan Africa 3.2 percent; and Middle East–North Africa 0.6 percent. See Pew Research Center, “Religiously Unaffiliated,” December 18, 2012, http://www.pewforum.org/2012/12/18/global-religious-landscape-unaffiliated/.
[2] Ver Pew Research Center, “Nones on the Rise’; Pew Research Center, “When Americans Say They Believe in God, What Do They Mean?” April 25, 2018, http://www.pewforum.org/2018/04/25/when-americans-say-they-believe-in-god-what-do-they-mean/.
[3] Pew Research Center, “Brazil`s Changing Religious Landscape,” July 18, 2013, https://www.pewforum.org/2013/07/18/brazils-changing-religious-landscape/.
[4] Pew Research Center, “America’s Changing Religious Landscape,” May 12, 2015, https://www.pewforum.org/2015/05/12/americas-changing-religious-landscape/.
[5] Ver Voltaire. Treatise on Toleration (London: Penguin, 2016), 6–15, 24–35, 108–14, 137.
[6] Ver Charles Taylor, The Ethics of Authenticity (Cambridge, MA: Harvard University Press, 2003), 50.
[7] Peter L. Berger, The Many Altars of Modernity: Toward a Paradigm for Religion in a Pluralist Age (Boston, MA: Walter de Gruyter, 2014), 2, 3.
[8] Grace Davie, The Sociology of Religion (Los Angeles: SAGE, 2007), 44.
[9] Courtney Miller, “‘Spiritual but not religious’: rethinking the legal definition of religion.” Virginia Law Review 102, no. 3 (2016): 833–94. http://www.jstor.org/stable/43923324.
[10] Peter L. Berger and Anton Zijderveld, In Praise of Doubt: How to Have Convictions Without Becoming a Fanatic (New York: Harper Collins, 2009), 147–48.
[11] Ver Pew Research Center, “A Closer Look at America’s Rapidly Growing Religious Nones,” 13 de maio, 2015, https://www.pewresearch.org/fact-tank/2015/05/13/a-closer-look-at-americas-rapidly-growing-religious- nones/; Pew Research Center, “Nones on the Rise”; White, Rise of the Nones.
[12] Pew Research center, “When Americans say they believe in God, what do they mean?” 25 de Abril, 2018, https://www.pewforum.org/2018/04/25/when-americans-say-they-believe-in-god-what-do-they-mean/.
[13] Ver Roger Finke and Rodney Stark, The Churching of America 1776-2005: Winners and Losers in Our Religious Economy (New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 2005); Iannaccone, Finke, and Stark, “Deregulating Religion”; Stark and Finke, Acts of Faith.
[14] Ver Pew Research Center, “5 Key Findings About Religiosity in the U.S.—and How It’s Changing,” November 3, 2015, https://www.pewresearch.org/fact-tank/2015/11/03/5-key-findings-about-religiosity-in-the-u-s- and-how-its-changing/; Pew Research Center, “More Americans Now Say They’re Spiritual but Not Religious,”
[15] Ver Thomas Luckmann, The Invisible Religion: The Problem of Religion in Modern Society (New York: Macmillan, 1967), 106; Peter L. Berger and Thomas Luckmann. The Social Construction of Reality: A Treatise in the Sociology of Knowledge (London: Penguin Books, 1966), 177-78.
[16] James Emery White, The Rise of the Nones: Understanding and Reaching the Religiously Unaffiliated (Grand Rapids, MI: Baker Books, 2014), 155-56; Ellen G. White, Evangelism (Silver Spring, MD: Ellen G. White Estate, 2014), 57.
[17] Pew Research Center, “More See ‘Too Much’ Religious Talk by Politicians.” March 23, 2012. https://www.pewforum.org/2012/03/21/more-see-too-much-religious-talk-by-politicians/.
[18] Pew Research Center, “About the Pew Internet & American Life Project,” June 27, 2007, https://www.pewresearch.org/internet/2007/06/27/about-the-pew-internet-american-life-project/; Jon Paulien, “The Post-Modern Acts of God,” Scribd, November 18, 2004, https://www.scribd.com/document/7240142/The-Post-Modern-Acts-of-God.
[19] James Emery White, The Rise of the Nones (Grand Rapids, MI: Baker Books, 2014), 101.
[20] See Pew Research Center, “The Modern News Consumer: News Attitudes and Practices in the Digital Era,” July 7, 2016, https://www.journalism.org/2016/07/07/the-modern-news-consumer/; Text ex Machina, “New York Times Study: The Psychology of Sharing: Why Do People Share Online?,” July 18, 2011, http://text-ex-machina.co.uk/blog/new-york-times-study.html; Simplilearn, “Understanding the Impacts of Social Media: Pros and Cons,” September 22, 2020, https://www.simplilearn.com/real-impact-social-media-article; Peter Berger, Questions of Faith: A Skeptical Affirmation of Christianity (Malden, MA: Blackwell, 2004), 14–15; Santana, Luther King de Andrade Santana. “Religião e mercado: A mídia empresarial-religiosa.” REVER, no. 1 (2005), 67; Max Weber, The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism (New York: Routledge, 2001), 105–12.