Caminho que tem volta
Neste mês do Setembro Amarelo, reportagem mostra como é possível encarar o suicídio e compreender que este caminho não precisa sempre terminar ruim.
O suicídio é a 17ª principal causa de mortes em todo o mundo. Entre os jovens, é a segunda. Por ano, 800 mil pessoas tiram a própria vida, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), que considera a questão um problema prioritário de saúde pública global.
Embora a ciência não tenha compreendido ainda completamente as razões que levam alguém a dar fim à existência, pesquisadores das Universidades de Glasgow (Reino Unido) e Harvard (EUA) sugerem que essa atitude drástica seja resultado de uma interação complexa de vários fatores.
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Para Rory O’Connor, do Laboratório de Pesquisas do Comportamento Suicida da Universidade de Glasgow, e Matthew K. Nock, do Departamento de Psicologia da Universidade de Harvard, aspectos da personalidade, cognitivos e sociais, além de experiências negativas ou traumáticas desempenham um importante papel na adoção de um comportamento suicida.
Sobreviventes
“Foi um choque”, lembra Paloma (nome fictício), que perdeu a mãe por overdose de medicamentos. Ela é uma sobrevivente, termo dado a filhos ou parentes próximos de alguém que cometeu suicídio.
Ao contrário do que o senso comum poderia sugerir, sua mãe não apresentava sinais de tristeza nem depressão no dia em que tirou a própria vida. “Ela até parecia mais disposta naquela semana”, acentua. A mãe, Cristina, sinalizava ter superado a depressão e episódios recentes de tentativa de suicídio.
“O histórico dela era muito complicado. Chegou a fazer um tratamento psiquiátrico bem pesado e as crises pararam. Mas havia os sintomas da depressão e os pensamentos dela eram muito negativos. Pouco antes de morrer, o quadro dela piorou porque uma pessoa querida faleceu. Porém, com terapia, ela melhorou bastante. Até os assuntos mudaram. Por orientação de uma terapeuta, ela se envolveu em alguns projetos, achou que estava bem e, por conta disso, parou de tomar os medicamentos, além de interromper o tratamento. Contudo, ninguém sabia disso”, revela.
A fatalidade pegou todos na família de surpresa. “Fiquei nervosa e me bateu um sentimento de tristeza. Não conseguia acreditar que ela havia feito isso”, desabafa Paloma. Cristina deixou algumas cartas para os familiares e tomou vários medicamentos. Depois disso, ficou parada. Foi quando o padrasto de Paloma a encontrou, quase sem respiração, e a levou ao pronto-socorro, mas não foi possível salvá-la.
Para a professora de idiomas Martina Tejano, que vive no interior de São Paulo e por anos lutou contra uma depressão, a vontade de tirar a própria vida é, na verdade, uma tentativa desesperada de dar fim a um sofrimento insuportável. “Ninguém quer morrer. A vontade de morrer é o desejo de que acabe aquela dor invisível e pesada. O problema é que o suicida tem a percepção de que já esgotou as tentativas de fazer a situação melhorar. É por isso que a pessoa fica idealizando não o ato de se matar, mas de deixar de existir”, esclarece.
Ela conta que seus sintomas de depressão apareceram após a perda de um bebê. Mesmo convivendo com a doença, depois da morte do filho e do divórcio, ela se mudou para os Estados Unidos, onde acabou sofrendo também num relacionamento abusivo.
“Eu achava que se tratava apenas de um relacionamento ‘complicado’. Nunca contei a ninguém o que passava em casa. Porém, eu sofria abuso mental e emocional, e era estuprada por meu companheiro”, revela a docente, que não chegou a tentar o suicídio, mas precisou lutar seriamente contra a depressão e o preconceito.“Fiz um pouco de psicoterapia, o que me ajudou tremendamente, muito mais do que remédio”, compara, ao explicar como lidou com a depressão. “É uma luta física e mental. É aprender a ouvir seu diálogo interno, analisá-lo, e depois mostrar quem é que manda na situação”, detalha.
Martina compara a depressão – a principal causa de morte por suicídio – com um disco arranhado que repete a mesma fala de conotação negativa. Contudo, é preciso fazer esse “disco” parar. “Tudo não dá errado; isso é normal. Não acontece só comigo, acontece com todos. Eu mereço coisa boa também”, salienta, ao repetir pensamentos que evidenciam a necessidade de uma reestruturação mental.
Como prevenir? Vídeo com a psicóloga Carolina Silva:
Em busca de ajuda
No estudo publicado por O’Connor e Nock na revista científica Lancet Psychiatry, em 2014, os pesquisadores apontaram que boa parte das pessoas que lutam contra pensamentos suicidas não recebe tratamento. “Algumas evidências sugerem que diferentes formas de terapias cognitivas e comportamentais possam reduzir o risco de novas tentativas de suicídio”, escreveram os cientistas, embora reconheçam que há poucas evidências na literatura acadêmica sobre os “fatores de proteção” contra esse problema.
Para quem infelizmente chora a perda de uma pessoa querida, um recurso fundamental é buscar ajuda na própria família. “Aceitar ajuda da família e de amigos que conheceram bem aquela pessoa também é benéfico”, garante Paloma, a filha que hoje é órfã de mãe.
No entanto, talvez o maior desafio para que mais pessoas busquem e recebam auxílio seja vencer o estigma que envolve o tema. Todo problema que é um tabu acaba não sendo discutido como deveria pela sociedade. De acordo com o psiquiatra Jorge Salton, professor de Medicina da Universidade Federal de Passo Fundo (RS), perdas recentes, transtornos mentais, uso de drogas e álcool, histórico de suicídio na família e bullying são alguns sinais de alerta. Porém, outros diversos fatores podem impedir a identificação precoce do problema, como receio de falar sobre o assunto.
Por isso, ele acredita que esse assunto precise ser encarado de forma honesta. “Um tabu como esse não desaparece sem o esforço de todos nós. A dificuldade em buscar ajuda, a falta de conhecimento e atenção sobre o assunto por profissionais de saúde e a ideia de que o comportamento suicida não seja um evento frequente dificultam a prevenção”, enumera.
Epidemia global
Contudo, o desafio de enfrentar esse tabu social e um problema de saúde pública é um desafio para nações de todo o mundo. Em países como os Estados Unidos, por exemplo, o suicídio chega a ser a décima principal causa de mortes. Segundo a OMS, trata-se de um fenômeno mundial, cujo impacto maior tem sido sentido nos países mais pobres e em desenvolvimento, onde 78% dos suicídios de 2015 foram registrados.
É nesses países também que os números podem talvez não refletir tão bem a realidade porque, segundo a OMS, para cada adulto que tira a própria vida, pode haver outros 20 tentando fazer a mesma coisa. Entre jovens e adolescentes, os números são mais elevados do que a média geral. O suicídio já representa a segunda causa de morte das pessoas de 15 a 29 anos. De acordo com o relatório Jovens do Brasil 2014, as taxas de suicídio haviam crescido quase 63% entre 1980 e 2012, aumentando o ritmo a partir da virada do século, tanto na população em geral quanto entre os jovens.
Por sua vez, no Equador, os jovens também parecem ser vulneráveis. “Eles são os que mais cometem suicídio”, diz a pesquisadora Lorena Campo Aráuz, professora da Universidade Politécnica Salesiana. Segundo a docente, o método mais comum para tirar a própria vida no país é o enforcamento e, entre as mulheres, a ingestão de substâncias tóxicas.
Ela é uma das organizadoras do livro Etnografías del Suicidio en América del Sur (Etnografias do Suicídio na América do Sul) e publicou recentemente um estudo sobre o processo ritual de significação do suicídio em seu país. “Na hora de morrer, as pessoas reproduzem cenas representativas da própria vida e de sua cultura”, explica. “Falar do suicídio é falar da dor. O que se evidencia é o processo ritual, o de dar sentido ao ato, e as reações sociais frente a uma morte ‘voluntária’”, sublinha a pesquisadora.
Apesar de os países sul-americanos apresentarem taxas expressivas de suicídio, elas são baixas em comparação com os números da Finlândia, China, Lituânia, Hungria, Rússia e Coreia do Sul. Isso não significa necessariamente que esse problema de saúde pública por aqui seja menos alarmante, mas que outros países apresentam registros mais confiáveis dos casos de suicídio. “Eles têm registros mais rígidos, que permitem diminuir a possibilidade de mascaramento dos dados”, completa a professora. Na América do Sul, muitos casos de suicídio acabam sendo notificados como acidente ou causa desconhecida, o que compromete a confiabilidade das estatísticas nacionais.
Linha do bem
Para mudar esse quadro, muita gente ao redor do mundo tem trabalhado para apoiar quem luta contra a depressão e os pensamentos suicidas. Na Argentina existe o Centro de Assistência ao Suicida (CAS); no Uruguai, a ONG Último Recurso; no Chile, Colômbia, Equador, Espanha e Portugal, a organização de voluntariado Telefone da Esperança e, no Brasil, o Centro de Valorização da Vida (CVV).
Nos Estados Unidos, instituições como a Fundação Americana para a Prevenção do Suicídio (AFSP), e a Aliança Nacional de Saúde Mental (Nami, na sigla em inglês), oferecem programas de apoio a sobreviventes e pessoas que lidam com pensamentos suicidas, além de informações e estatísticas atualizadas sobre o problema no país.
No campo da saúde pública, países como Chile e Argentina desenvolveram seus próprios projetos, como o Programa Nacional de Prevenção do Suicídio, que adota, entre outras frentes de ação, avaliações de risco, planos regionais intersetoriais, sistemas de ajuda em situações de crise e capacitações a profissionais de saúde.
Há também iniciativas independentes, como o projeto Live This Through, da psicóloga, fotógrafa e escritora Dese’Rae Stage. O trabalho dessa ativista, que já tentou tirar a própria vida, consiste em divulgar uma coleção de retratos e histórias contadas por quem sobreviveu a uma tentativa de suicídio. Em 2013, ela arrecadou 23 mil dólares por meio de uma ferramenta digital de financiamento colaborativo para viajar pelos Estados Unidos afim de tirar fotos e coletar relatos. Até agosto de 2016, ela havia fotografado 166 pessoas, em 28 cidades americanas. Outro veículo para dar voz a esse drama é o blog The Suicide Project, por meio do qual pessoas são encorajadas a contar como encontraram forças para desistir do suicídio.
Navegação perigosa
Se por um lado a internet conecta pessoas e oferece auxílio e motivação para indivíduos que lutam para sobreviver, a rede mundial de computadores também pode ser uma teia perigosa para quem está vulnerável.
No início de 2017, surgiu nas redes sociais um jogo chamado Baleia Azul, no qual os participantes são incentivados a cumprir uma série de tarefas. Entre elas está a de assistir filmes de terror, mutilar-se e, por fi m, tirar a própria vida. O game, que parece ter sido produzido na Rússia, espalhou-se pelo mundo, causou algumas mortes e tirou o sono de pais e educadores. Segundo o jornal inglês The Sun, ao menos 130 mortes foram associadas ao jogo.
Também no início de 2017, uma série do Netflix sobre o suicídio colocou o tema em discussão na sociedade. A polêmica produção 13 Reasons Why foi considerada pelo epidemiologista John Ayers e outros quatro pesquisadores como irresponsável na abordagem de um assunto tão delicado. De acordo com os cientistas, nos 19 dias seguintes ao lançamento dessa série, a busca na internet por termos relacionados ao suicídio cresceu 19%. Detalhe: boa parte das pesquisas era sobre como tirar a própria vida.
“Não está claro se as buscas precederam alguma tentativa real. No entanto, a pesquisa por informações sobre métodos precisos de suicídio aumentaram após o lançamento da série”, alertam. A principal crítica desses especialistas é que a produção poderia ter seguido as orientações da OMS de como abordar o tema na mídia, o que prevê não exibir cenas de suicídio e incluir os contatos de serviços de ajuda em cada episódio da série.
Prevenção
Embora a epidemia de suicídio seja preocupante, ela pode ser combatida e evitada. Por vezes, como já mencionado, o tabu sobre o assunto impede uma discussão mais aberta a respeito do tema. O ponto é que perguntar sobre o suicídio não irá necessariamente incentivar o ato em si. Ao contrário, falar sobre isso de modo responsável é uma forma de oferecer acolhimento para quem pensa em tirar a própria vida e ajudar a reduzir a ansiedade de quem não tem visto saída para o sofrimento.
Outra medida de prevenção é restringir o acesso a objetos perigosos e a exposição às situações que possam facilitar o suicídio. “É necessário tornar os tratamentos psiquiátricos mais acessíveis para a população em geral, tendo em vista que quase todos os casos de suicídio têm relação com doenças mentais”, observa o psiquiatra Jorge Salton, professor da Universidade Federal de Passo Fundo (RS).
“Como ajudar uma pessoa com depressão? Convide-a para sair, arranque a pessoa de dentro de casa para distrair um pouco e dar risada. Se você já teve depressão, sabe como a luta é dura; por isso, apadrinhe alguém que passa pelo mesmo problema. Fale sobre o que você sente, troque experiências e fique de olho em quem você está acompanhando”, aconselha a professora Martina.
Se as causas do suicídio são múltiplas, a prevenção dessa epidemia também é resultado de inúmeros fatores. Quebrar o silêncio para falar a respeito desse tema pode ser o primeiro passo que levará a outros.
Leonardo Siqueira é jornalista e pós-graduado em Jornalismo Científico pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
Esta reportagem foi originalmente publicada na revista do projeto Quebrando o Silêncio , edição de 2018.