Resgate da nossa história
Em sua segunda edição, livro A Chegada do Adventismo ao Brasil ressalta o papel dos pioneiros no desenvolvimento da Igreja no País a partir do fim do século 19
Durante décadas, os primeiros episódios sobre o desembarque e a difusão da mensagem da Igreja Adventista no território nacional ficaram restritos aos núcleos de famílias diretamente ligadas a eles, e aos poucos “historiadores” que preservaram detalhes transmitidos de geração em geração. Algumas dessas particularidades foram “imortalizadas”, também, graças aos relatórios enviados por missionários à Associação Geral (sede mundial da denominação) e às publicações oficiais em língua portuguesa, como a Revista Adventista.
Mas foi somente no fim da década de 1990 que tudo foi reunido, sistematizado e narrado de forma cronológica e detalhada pelo então estudante Michelson Borges. O que era apenas um requisito acadêmico para se obter o diploma universitário tornou-se uma radiografia do desenvolvimento da Igreja no País.
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Vinte anos depois do lançamento de A Chegada do Adventismo ao Brasil (CPB, 2020, 192 p.), o autor traz nesta segunda edição, publicada em julho, informações resgatadas com a ajuda de acervos digitais e de outros pesquisadores, além de novos recursos, para inspirar leitores a dar continuidade ao trabalho iniciado pelos pioneiros.
O que lhe motivou a escrever sobre esse assunto?
A Chegada do Adventismo ao Brasil foi inicialmente meu trabalho de conclusão de curso (TCC) em Jornalismo, na Universidade Federal de Santa Catarina, em meados dos anos 1990. Na época, fazia apenas cinco anos que eu havia conhecido o adventismo e sido batizado no templo adventista central de Criciúma. Meu desejo era não apenas fazer um trabalho que me possibilitasse ganhar o diploma de jornalista, mas contribuir com a missão da Igreja pela qual eu havia me apaixonado.
Quando li na introdução da biografia de José Amador dos Reis (o primeiro brasileiro ordenado ao ministério pastoral adventista), escrita por Ivan Schmitt, que o registro dos primórdios do adventismo brasileiro era bem deficiente, tomei a decisão de reunir as histórias, organizá-las e escrever um livro-reportagem, no bom estilo New Journalism, que se vale de recursos literários para tornar a leitura mais interessante e atrativa.
Dediquei vários meses para visitar lugares históricos, entrevistar descendentes de pioneiros, pesquisar em museus e ler tudo o que estava disponível na época sobre a história da Igreja Adventista no Brasil. Mergulhei de cabeça no assunto e, como prêmio adicional, consegui a nota máxima da banca avaliadora!
Dois anos e meio depois de formado, fui chamado para trabalhar como editor na Casa Publicadora Brasileira (CPB). Aí tive acesso a mais informações nos arquivos da editora, conheci outros pesquisadores do adventismo, como Edegardo Max Wuttke, e enriqueci o conteúdo da obra. O livro acabou sendo publicado pela CPB, no ano 2000, com o selo comemorativo dos 100 anos da editora.
Após duas décadas desde que o livro foi publicado pela primeira vez, o que essa edição traz de novo?
Nessas duas décadas, pude viajar para vários lugares que eu não conhecia, em três continentes, e fazer pesquisas in loco. Com a disponibilização digital de acervos como o da Review and Herald e outros, ficou muito mais fácil pesquisar. Além disso, trabalhos acadêmicos como as dissertações de mestrado dos pastores Marcelo Mendes de Melo Moura e Edegar Link foram muitos úteis, no sentido de revisar e corrigir certas informações. O pastor Link fez um excelente trabalho ao unir as pontas soltas das histórias alemã e brasileira, no que diz respeito aos primórdios do adventismo em nosso País. Emir Schmitt foi outro pesquisador que me ajudou a aprofundar a história dos Hort.
Outra novidade foi a inserção de um quadro com perguntas no fim de cada capítulo, intitulado “Exemplo dos pioneiros”. O objetivo é fazer um resumo e destacar os pontos mais importantes do capítulo, além de promover discussão ou reflexão sobre o legado dos pioneiros.
Posso dizer que a segunda edição revista e atualizada de A Chegada do Adventismo ao Brasil está muito mais precisa, enriquecida com detalhes novos, mas sem perder a carga emocional e motivacional que sempre caracterizou essa obra que, entre os livros que escrevi, é o meu preferido.
Esse livro apresenta, acima de tudo, o compromisso dos pioneiros em anunciar o breve retorno de Jesus. Quais foram os principais desafios que eles encontraram para amplificar essa mensagem em um território tão vasto e multicultural como o Brasil?
Sem dúvida, uma das grandes dificuldades foi o preconceito de pessoas e líderes de outras religiões que viam os adventistas como membros de uma seita estranha. Afinal, esses novos crentes não comiam alimentos impuros, como a tão apreciada carne de porco; não consumiam bebidas alcoólicas; não frequentavam salões de baile; e, ainda por cima, guardavam o sábado em lugar do domingo. Em algumas regiões, os adventistas eram chamados de “sabatistas amaldiçoados”, em alemão.
Outro desafio era a falta de uma boa estrutura organizacional. Naqueles primórdios, cada missionário tinha que “se virar” como pudesse. A maioria deles eram colportores que viviam do que conseguiam com a venda de livros e revistas em inglês e alemão. Trabalhavam de maneira solitária, nem sempre conscientes do avanço da obra em outras regiões. Viviam literalmente pela fé.
Adicione-se a isso tudo a dificuldade para se viajar de um lugar a outro. No começo do século 20, havia poucas linhas de trem, e na maior parte do tempo os missionários tinham que viajar a pé ou montados em burros, muitas vezes carregando nas costas as caixas de livros e o restante da bagagem.
Qual foi o papel das publicações adventistas nesse processo?
Elas foram as sementes que chegaram primeiro e germinaram por conta própria, regadas pelo Espírito Santo. Quando os primeiros missionários e colportores começaram a chegar ao Brasil (o primeiro foi Albert [ou Augustus] Stauffer), a partir de 1893, ficaram surpresos ao encontrar pessoas que já criam na volta de Jesus e guardavam o sábado fazia alguns anos, graças à leitura de revistas e livros enviados gratuitamente dos Estados Unidos.
Algumas dessas revistas eram usadas como papel de embrulho para mercadorias. Quando os colonos iam às vendas comprar alguma coisa, levavam para casa páginas impressas em alemão. Liam esses conteúdos, comparavam com a Bíblia e aceitavam a mensagem adventista. Os caminhos da providência divina foram impressionantes em nosso País. O primeiro guardador do sábado no Brasil graças à leitura de literatura adventista foi Guilherme Belz, imigrante da Pomerânia. Ele e a esposa, Johanna, começaram a guardar o sábado em 1890.
De que maneira o estabelecimento de instituições, como colégios e editoras, por exemplo, foi fundamental para que mais pessoas ouvissem a respeito da mensagem da Igreja Adventista?
A partir de 1900, a Casa Publicadora Brasileira (na época chamada Sociedade Internacional de Tratados no Brasil) começou a produzir livros e revistas em língua portuguesa, o que possibilitou expandir o adventismo para além das fronteiras das colônias alemãs. A primeira publicação adventista no idioma local foi O Arauto da Verdade.
Já os colégios ajudaram a preparar missionários capacitados para a missão evangelística. Os pioneiros tinham tanto foco na missão que, quando plantavam uma igreja, faziam todo o esforço para, junto, iniciar uma pequena escola para fornecer educação cristã para as crianças. Não podemos, como Igreja, perder essa visão. Nossas editoras, escolas, clínicas, fábricas de alimentos e nossos hospitais devem servir de apoio à missão mais importante: pregar as três mensagens angélicas.
Durante o período de pesquisas, qual foi a história ou pessoa que mais lhe impactou? Por quê?
Pessoas foram três: Adolf Hort, Guilherme Belz e Guilherme Stein Jr. Hort era apenas um garotinho quando o primeiro pacote de literatura adventista foi aberto no Brasil, em 1880, na casa comercial do pai dele, David Hort, localizada em Brusque. Anos depois, já jovem e metido a valentão, ele convidou um amigo para subirem a Gaspar Alto a fim de causar baderna e destruir a igreja adventista que existia lá.
Para ele, religião de alemão era só a luterana. Quando apearam dos cavalos, com paus e pedras na mão, Hort ouviu pela janela, do lado de fora da casa de cultos, parte da pregação, e aquilo o impressionou. Desistiu do que havia ido fazer e voltou para casa. Com a esposa, Emma, Hort se aprofundou no estudo da Bíblia e, posteriormente, se uniu aos adventistas, tendo sido um grande exemplo de fé e bondade. O homem que queria destruir a igreja pioneira de Gaspar Alto tornou-se construtor de igrejas, como a de Corupá e a de Jaraguá do Sul. Sem dúvida, uma linda história que evidencia o poder transformador do evangelho.
Guilherme Belz, quando lia a Bíblia em sua infância, se deparou com a verdade do sábado. Quando perguntou sobre isso aos pais e ao pastor luterano, foi incentivado a abandonar o assunto. Décadas depois e a muitos quilômetros de sua terra natal, ele novamente se deparou com o quarto mandamento, dessa vez lendo um livro adventista que o irmão Carl havia adquirido. Belz comparou o conteúdo do livro com sua Bíblia e finalmente tomou a decisão de guardar o sábado, tornando-se, assim, o primeiro guardador do sábado convencido pela leitura de impressos adventistas no Brasil. Um dos filhos de Guilherme, Francisco, foi missionário e pregou o evangelho em várias partes do País. O filho Rodolpho tornou-se pastor, e o neto, Cláudio, também.
Guilherme Stein Jr. foi o nosso John Andrews. Jovem tremendamente culto, leu o livro O Grande Conflito em alemão e aceitou a mensagem adventista, abrindo mão de uma promissora carreira de empresário para se dedicar à obra adventista como colportor, professor, diretor de escola e editor. Diz-se que ele conhecia 40 idiomas, tendo se tornado o pioneiro do criacionismo no Brasil.
Histórias são muitas. Mas uma muito marcante se passou com o pastor Huldreich Graf, o primeiro ministro adventista designado para servir no Brasil. Certa ocasião, ele viajava sozinho no lombo de uma mula, pelos “caminhos e valados” do Rio Grande do Sul, na região de Taquari. De repente, o animal teimou em seguir para o lado oposto ao que o pastor queria ir. Graf insistiu, mas não conseguiu dissuadir a mula.
Então, percebendo que poderia ser uma intervenção divina, deixou que o animal seguisse para onde queria. Depois de mais algum tempo de viagem, chegaram a uma casa no meio do mato. O pastor bateu na porta, identificou-se e foi informado pela família de que eles estavam orando fazia dois anos pela visita de um ministro adventista. Graf ficou alguns dias com aqueles colonos, estudaram a Bíblia e todos foram batizados!
O que seu livro evidencia sobre a importância de se conhecer o esforço, sacrifício e o caminho aberto pelos pioneiros? Como isso ajuda a consolidar a identidade adventista?
Vou contar um pouco da minha experiência. Decidi me tornar adventista depois de cerca de três anos de muito estudo bíblico e de muitas comparações com doutrinas de outras igrejas. Vim para a Igreja Adventista totalmente convicto com respeito à decisão que estava tomando. Jesus tornou-Se meu Salvador pessoal e meu Senhor. E era muito bom saber que existe na Terra um povo que O ama tanto que procura fazer a vontade dEle em tudo, mesmo naquilo em que, por causa disso, tem que ir na contramão do mundo.
Quando me aprofundei na história dos pioneiros, pude conhecer homens e mulheres que abriram mão de muita coisa para seguir Jesus e fazer a vontade dEle. Homens e mulheres que se dedicaram inteiramente à missão de advertir o mundo quanto à proximidade do segundo advento, muitas vezes derramando lágrimas, suor e até sangue para cumprir esse chamado. Esses testemunhos de fé e bravura mexeram profundamente comigo. Posso dizer que meu adventismo passou a ser outro a partir dessa imersão na história e na identidade adventista. O mínimo que eu poderia desejar era ser como esses pioneiros, ciente de minha missão, da missão da Igreja, e orar para poder terminar o que eles começaram.
Por que o legado deixado por homens e mulheres que dedicaram a vida para ajudar pessoas a se preparem para o encontro com Cristo deveria inspirar cada leitor a ter o mesmo senso de urgência em compartilhar a mensagem de que Ele em breve voltará?
Essa pergunta me faz pensar nos três lugares mais especiais que visitei durante minhas pesquisas – três cemitérios. O cemitério de Battle Creek, em Michigan, nos Estados Unidos, contém os túmulos de muitos pioneiros norte-americanos, como o casal Tiago e Ellen White. Um lugar inspirador que transpira esperança.
Os outros dois que mexeram com minhas emoções são os cemitérios adventistas de Gaspar Alto (localidade catarinense onde foi organizado o primeiro templo adventista no Brasil, pelo pastor Frank Westphal) e de Rolante, no Rio Grande do Sul. Em ambos, os túmulos estão voltados para o Oriente, região de onde virá a nuvem de anjos que rodeará Jesus em Sua segunda vinda. Os pioneiros pediram para ser sepultados assim, a fim de que a volta de Jesus seja a primeira coisa que verão quando despertarem do sono da morte. Ou seja, mesmo mortos eles continuam pregando!
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Michelson Borges é pastor da Igreja Adventista do Sétimo Dia, jornalista formado pela Universidade Federal de Santa Catarina, mestre em Teologia pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp) e pós-graduando em Biologia Molecular pela Universidade Cândido Mendes.
Autor de vários livros sobre criacionismo, história e mídia publicados pela Casa Publicadora Brasileira, é editor da revista Vida e Saúde, editor associado da Lição da Escola Sabatina dos Jovens e mantém os blogs criacionismo.com.br e outraleitura.com.br.
Vice-presidente da Sociedade Criacionista Brasileira, tem participado como palestrante em seminários criacionistas no Brasil e no exterior. Casado com Débora Tatiane, é pai de três filhos.
Veja, também, o cinedocumentário Homens de Fé, que reconstitui os primeiros anos da Igreja Adventista no País: